domingo, 19 de dezembro de 2010

FRASES CÉLEBRES PARA DESCONTRAIR


Oi, pessoal! Essa antologia de citações venenosas foi extraída do livro "O Melhor do Mau Humor", de Ruy Castro. Espero que gostem e, se gostarem, vale a pena comprar o livro... É uma boa munição de respostas rápidas para as horas críticas.

Animais

"Meu animal favorito: bife."
(Fran Lebowttz)

Beijo
"O homem rouba o primeiro beijo, implora pelo segundo, exige o terceiro, recebe o quarto, aceita o quinto, e suporta os restantes."
(Helen Rowland)

Casamento
"O segundo casamento é o triunfo da esperança sobre a experiência."
(Samuel Johnson)

Crianças

"Só pergunte a uma criança o que ela vai querer para jantar se ela estiver pagando."
(Franz Lebowttz)

Dinheiro

"O dinheiro pode não comprar a saúde, mas eu me contentaria com uma cadeira de rodas cravejada de diamantes."
(Dorothy Parker)

"As únicas pessoas que pensam mais em dinheiro do que os ricos são, naturalmente, os pobres."
(Oscar Wilde)

Egoísmo

"Egoísta, s.m. Um sujeito que pensa mais em si mesmo do que em mim."
(Ambrose Bierce)

Filosofia
"O truque da filosofia é começar por algo tão simples que ninguém ache digno de nota e terminar por algo tão complexo que ninguém entenda."
(Bertrand Russel)

Governo
"É uma pena que todas as pessoas que sabem como governar o país estejam ocupadas dirigindo táxis ou cortando cabelo."
(George Burns)

Homens
"A única profundidade que os homens admiram numa mulher é o seu decote."
(Zsa Zsa Gabor)

"Homens são criaturas com duas pernas e oito mãos."
(Jayne Mansfield)

"Uma vez igualadas aos homens, as mulheres se tornam seus superiores."
(Sócrates)

Ilusão
"O sábado é uma ilusão."
(Nelson Rodrigues)

Jornalismo

"Primeiro, apure os fatos. Depois, pode distorcê-los à vontade."
(Mark Twain)

Jovens
"Jovens de todo o mundo: envelheçam."
(Nelson Rodrigues)

Literatura

"Quando se diz que um escritor está na moda, é porque ele é admirado por menores de trinta anos."
(George Orwell)

"Alguns livros são do tipo que, quando você os larga, não consegue pegar mais."
(Millôr Fernandes)

Moda
"Certas roupas femininas nunca saem de moda. Apenas ficam mais ridículas com o passar dos anos."
(Fred Allen)

Mulheres
"Amo as mulheres, mas não as admiro."
(Charles Chaplin)

Negócios

"Reuniões são indispensáveis quando não se quer decidir nada."
(John Kenneth Galbraith)

Ódio
"Sou livre de qualquer preconceito. Odeio todo mundo, indistintamente."
(W. C. Fields)

Pais
"Papai e mamãe eram duas crianças quando se casaram. Ele tinha dezoito anos, ela dezesseis e eu três."
(Billie Holiday)

Paixão
"Muitos homens que se apaixonam pela covinha de um sorriso cometem o erro de se casar com a garota inteira."
(Stephen Leacock)

"Estou apaixonado pela mesma mulher há 41 anos. Se minha esposa descobrir, vai me matar."
(Henny Youngman)

Rock
"Não sei uma nota de música. Nem preciso."
(Elvis Presley)

"Adoro Beethoven, especialmente os poemas."
(Ringo Starr)

Sexo
"É perda de tempo procurar zonas erógenas no corpo de uma mulher. Ou elas estão em toda parte ou em parte alguma."
(Joseph Heller)

"Nada mais grotesco do que dois americanos se congratulando por ser heterossexuais. Isto só acontece nos Estados Unidos. Nunca vi dois italianos se congratulando por gostar de mulheres. Para eles, isso é normal."
(Gore Vidal)

"O ato sexual é uma mijada."
(Nelson Rodrigues)

Silêncio

"Silêncio - aquela insuportável réplica."
(G. K. Chesterton)

Transporte
"Odeio carros. Os antigos inclusive. Prefiro cavalos. Pô, pelo menos os cavalos são humanos!"
(J. D. Salinger)

"Avião: é mais pesado do que o ar, tem motor à explosão e foi inventado por um brasileiro. Não pode funcionar."
(Vinícius de Moraes)

Últimas palavras

"Hei de fazer do Brasil o líder dos países pobres."
(Luis Inácio Lula da Silva)

Vaidade

"Só conheci três gênios na vida: Pablo Picasso, Alfred North Whitehead e Gertrude Stein."
(Gertrude Stein)

Xenofobia

"Um americano pode viver vinte anos no Brasil e, quando volta para os Estados Unidos, ninguém o chama de brasileiro. Já ao nativo, ao indígena, ao aborígine, é proibido sair da taba."
(Tom Jobim)

Zoo

"O tipo de sujeito que gosta de passar o tempo contemplando um camelo babar, araras matraqueando ou um lagarto comendo moscas, é exatamente o tipo de sujeito cuja debilidade mental deve ser combatida, não estimulada."
(H. L. Mencken)


DE NOITINHA

O vento quente na noite fria
O vento frio na noite quente
Árvores que sussurram na noite vazia
Um gole em seco na rua escura

A fria noite de noite crua
Um sussurro pesado de meias palavras
Coruja branca na noite sem lua
Um peito pesado de frases não ditas

Um mar de estrelas desiludidas
Silêncio, silêncio, silêncio
É noite, é noite, tão noite que dói

E explode no céu então o sol de alegria
Um riso abafado
Um pulo sem fardo

E um poema assim, tão inacabado!...




CASA, AMOR E GASOLINA (parte I)

Ele chegou tão desnorteado em minha casa que, a princípio, tive medo. Veio até a porta arrastando-se pela calçada coberta de graminha como um coxo, deixando um rastro de sangue atrás de si, e uma poça escura bem no lugar onde parou sem ar.
No momento, eu acabava de sair de casa, estava ainda com as chaves na mão e mil coisas para fazer, quando avistei aquela massa humana e ensanguentada vindo em minha direção.
O pânico foi imediato, assim como o choque, que me paralisou. Contudo, bastou fitar seus olhos logo abaixo de mim para que uma pena brutal me atingisse em cheio. Não havia muito que fazer, afinal. Sendo enfermeira, deixei o instinto de sobrevivência de lado e acionei o instinto “ajudar ao próximo”. Larguei a bolsa e as chaves no chão e me agachei em direção ao seu rosto bronzeado, de alguém que trabalhava no sol. Estava retorcido de dor. As mãos que tentavam agarrar meus braços em busca de ar e socorro eram calosas como as de um pedreiro.
- Ei, camarada... Tudo bem aí? – obtive apenas um grunhido resfolegante como resposta.
O homem parecia um cachorro estufado, babão e à beira da morte.
- Ok. Vamos te tirar daqui.
Não foi fácil arrastá-lo escada acima até a varanda sob o alpendre. Reclamei um pouco, falando comigo mesma, enquanto pensava na melhor forma de tratar os ferimentos que agora eu observava de perto.
Foi fácil reconhecer as marcas. Eu lidava com aquilo todos os dias, na escola onde trabalhava, ao tratar das crianças que conviviam de perto – algumas vezes até dentro de casa – com a violência carniceira. Aqueles ali eram buracos de bala. Nas pernas, no abdome, e um inchaço no ombro direito.
- Pesado, hein?! Vamos, só mais um pouquinho. Preciso pelo menos te colocar na sombra.
Instantaneamente, ele fechou os olhos, como se assim pudesse ficar mais leve.
Foi o que imaginei. Ofegava.
- Com que gente o senhor foi se meter?... Espero que não esteja jurado de morte. Isso seria realmente um problema. Pronto.
Vi um traço de humor macabro em seus olhos, quando ele os abriu e notou que eu começava a rasgar-lhe a camisa – que um dia fora – azul escura, encharcada de sangue.
- Você... Você sabe...
- Shh... Eu sei o que estou fazendo. Sou enfermeira.
- Por favor, me ajude – ele agarrou meu braço, cerrando os dentes para não gritar de dor quando comecei a procurar mais buracos em sua pele.
- Tudo bem. É o que estou fazendo.
- Será que você pode dizer onde estou?
- Bom... – eu olhei rapidamente para ele, franzindo as sobrancelhas. – Estás em Macapá, afastado do centro da cidade. Ahn... Estamos perto da Lagoa dos Índios.
- Macapá... Macapá... Amapá.
- Isso. Isso. O meu nome é Beatriz. Bia, se preferir. Acho que nesse estado não vais conseguir dizer o nome todo. Trabalho numa escola pública, no Cabralzinho, como enfermeira. Esta é minha casa. Estás na minha casa, no Buriti, e tudo vai ficar bem.
Eu falava, tentando distraí-lo, enquanto avaliava o resto dos danos com a mão empapada de sangue.
- Dói aqui? – apertei seu ombro.
- Ai!
- Está fraturado. Provavelmente a clavícula. Mas que coisa, hein? Precisamos ir para o médico. Acho que te trituraram... O que tu fizeste?
Ele fechou os olhos.
- Eu atrasei você.
- Realmente. Mas duvido que seja por isso que te moeram desse jeito.
- Por favor... Não me deixe aqui... Eu vou morrer. Não estou vendo direito.
- É o menor dos seus problemas. Tudo bem, já disse que não deixo. Você escolheu a porta certa para vir morrer, porque não vai. Mas agora... Tu também precisas me ajudar, certo? Vou ter que te colocar dentro de um Fiat velho e apertado e correr para o hospital. Mas para isso precisas levantar e se apoiar em mim, pode ser? Vamos no três. Um... Dois... Três. Isso. Muito bem. Meu carro está logo ali. Só mais um pouquinho. Aguente firme!
Aquele foi um dia surreal. Eu saíra de casa às seis da manhã, para encontrar um moribundo ensanguentado bem na porta. Um moribundo sem nome, sem pistas, sem memória.
Mas isso não significava que eu ia ficar sem respostas.
Ele havia feito com que eu perdesse uma segunda feira agitada na escola... Não fazia mal então que, em troca, fosse submetido a um pequeno interrogatório.
Mas eu duvidava que ele fosse se lembrar. Não conseguia raciocinar direito, os olhos estavam vidrados, os membros convulsivos, e a barriga toda furada. Até mesmo depois de atendido, quando voltei com ele em silêncio para a minha casa, seu olhar perdido permanecia confuso.
Era, sem sombra de dúvidas, um bandido. Devia estar metido com gangues, drogas, roubos, alguma fuga do IAPEN... qualquer tipo de coisa assim. Eu não duvidava e, apesar disso, não tinha medo. Só o que corria pelas minhas veias era uma curiosidade mórbida. Tentei controlá-la até que ele estivesse instalado. Na minha casa.
A amnésia momentânea tinha vindo bem a calhar. Por uns dias, até a recuperação completa, ele estaria fora das ruas e, se Deus quisesse, em segurança. Trancafiado num dos quartos da minúscula casa de uma enfermeira solteira e de poucas posses. Bem. Eu duvidava que ele pudesse reclamar de algo. Mal falava, e aquela situação deveria ser muito melhor que seu estado anterior.
O médico havia dito que a perda de memória se devia, provavelmente, a alguma experiência muito traumática que ele vivenciara havia algumas horas. Talvez demorasse uma soneca para voltar. Ou talvez as memórias sumissem por meses. Ou talvez não voltassem. Era difícil precisar, principalmente com tão poucos mecanismos, e ainda por cima precários, como o que havia no hospital onde o levei. Era muita ciência, muita predestinação, muito surrealismo para um médico cansado e cheio de olheiras de um hospital quase interiorano.
Então, eu e o baleado ficamos acertados tacitamente que ele permaneceria em minha casa.
Numa noite, depois de trocar suas bandagens, enfaixar com gaze nova os seus pontos de bala, e massagear a clavícula quebrada com azeite de andiroba, ele adormeceu.
Com calma e silêncio – coisas antinaturais numa pessoa elétrica e falante como eu -, tive o cuidado de colocar sua tipoia de volta como se estivesse tratando de uma criança. Então pude olhar melhor para ele.
Fazia duas semanas que estávamos naquela rotina. E ainda assim todo dia parecia algo novo. Ele me olhava, e me olhava, e me olhava... Enquanto eu tratava dos ferimentos. E nunca dizia nada. Quase nada. A não ser, é claro, aquele “obrigado” murmurado e emocionado depois de cada dia de curativos e esparadrapos.
No total, ele parecia um homem calmo. Algumas vezes, eu me excedia e falava tanto, mas tanto... E ele ouvia. Isso era o mais engraçado. Tinha comentários estranhos, engraçados ou inteligentes para fazer sobre o que quer que eu dissesse, e ainda assim não se lembrava de nada antes do dia em que chegara arrastando-se até a minha porta. E agora eu tinha certeza de uma coisa: ele não era um bandido.
Não um bandido no sentido mais brutal ao qual costumamos associar. Não... era algo mais. Podia até ser do tipo obscuro, o que eu duvidava, mas havia nele uma passividade régia, um jeito calmo, controlado, reservado de conversar. Sua voz era sóbria, seus gestos eram contidos e ele nunca reclamava. Transpirava até certa autoridade. E apesar de tanta calma e paz, os seus olhos transbordavam mistério e palavras. Vinte e quatro horas por dia.
Olhei para ele. Tirei-lhe aquele monte de cabelo liso da testa e penteei-os para trás. Sim, agora estava com os tais olhos fechados. Mas normalmente, esses mesmos olhos, olhos cinza, costumavam olhar para mim como se soubessem quem eu era, o que queria, como se conhecessem meus planos, minha alma. Havia um calor sinistro e provocante ali dentro. Um calor que beirava a estupidez romântica dos poetas. Um desses calores que a gente encontra nos olhos da nossa mãe, ou nos nossos próprios olhos, quando estamos de algum modo apaixonados. E seja pelo que for.
Ele tinha esses olhos. Cinza. O que me fez deduzir que não era um nativo da minha cidade. Mas não apenas por suas características genéticas, tão patentemente “sudeste”, “sul”, ou sei lá o quê... Mas também pelo sotaque. Era difícil de rastrear.
No dia seguinte, depois do café, ele pediu que eu o levasse até o deque. Não era normal que eu o arrastasse pelos minúsculos cômodos da casa, mas algumas vezes ele gostava de olhar para fora, pela varanda do quarto onde estava ou ainda pela janela de trás, que dava para a lagoa.
Minha casa era pequena, como se feita para alguma boneca Polly. No entanto, havia ali uma graça infantil que me encantara desde que eu saíra da casa dos meus pais em busca de um lugar só meu. Eu tinha dois quartos, um banheiro, uma cozinha, uma sala ampla no térreo e um deque, numa casa de dois andares. Era tudo o que eu precisava. E, afinal de contas, sem pagar nenhum centavo, já que o imóvel tinha sido presente do papai. Um brinde à independência dependente!
Ao ar livre no deque, ajudei-o a sentar-se numa das cadeiras acolchoada e redobrável e ficamos a observar o céu nublado de dezembro. Imaginei que o tempo não estivesse exatamente “frio” se comparado ao frio que ele estava acostumado - se fosse mesmo do sul ou sudeste -, mas ainda assim, passados alguns minutos eu voltei ao quarto e apanhei um edredom para envolvê-lo. Com o braço direito imobilizado, e o resto do corpo enfaixado, ele não fazia quase nada sem ajuda.
- Obrigado – disse com um sorriso largo, embora rápido, enquanto eu voltava a me sentar.
Ficamos assim um tempo, em silêncio. Eu terminava a minha caneca de Nescau quente. De vez em quando ele me olhava pelo rabinho do olho.
- Quantos anos você tem? – ele perguntou de repente. Fiquei um pouco embaraçada.
- Por quê?
- Por que o quê?
- Por que queres saber?
- Por... Curiosidade.
- 23. E tu?
Ele me olhou e sorriu.
- Ops! Desculpa.
- Tudo bem. Não é culpa sua eu não poder lembrar.
Eu sorri aliviada.
- Obrigado pelo que está fazendo, Bia.
- Ah... – descartei o agradecimento com a mão. – Não é nada. Costumo ajudar desconhecidos baleados que batem à porta da minha casa e melam meu carro de sangue. É uma espécie de hobbie.
Ele riu.
- Sabe... Amanhã é véspera de Natal. Já tens planos?
Ele me olhou captando meu ar sardônico.
- Você é insuportável às vezes.
- Eu sei!
- É claro que tenho planos. Vou fazer o que você fizer.
- Bem... Então aí complica.
- Por quê?
- Meus pais... Eu passo todo Natal na casa deles. Não sei se eu poderia dessa vez, contigo aqui.
- Mas por quê? Você pode ir, se quiser. Não se preocupe comigo.
- Eu gostaria que tu fosses comigo, essa é a verdade. Mas acho que meus pais estranhariam. Seria estranho, não seria? Contar isso para eles... Bem, fico imaginando quantos anos tu tens.
- E que isso tem a ver com a conversa que estamos tendo?
- Ah, teus olhos dizem que deves ter uns trinta. Não vou chegar em casa toda saltitante e, do nada, apresentar um namorado de trinta anos. Cairia mal. Também não posso esclarecer todo o potencial de bandido que tem o seu histórico recente. Então o jeito é ficarmos por aqui.
- Isso não me parece bem.
- Ei, eu mando aqui. Sou eu quem ainda está com a memória legal, esqueceu? Quem pode se lembrar do próprio nome faz as regras.
- Ok. Você manda. E o que vai dizer pra eles?
- Eu me viro. Gostas de peru?
Ele fuzilou-me com os olhos, mas riu.
- É o que vamos descobrir.

CASA, AMOR E GASOLINA (parte II)

Nossa véspera de Natal juntos, apesar de tudo, foi especial. Eu tinha montado a minha árvore ainda no mês de novembro, e quando o dia 24 enfim chegou tudo já estava pronto. Bastou colocar os presentes sob a árvore e comprar os ingredientes para a ceia. Tudo sairia delicioso, graças aos segredos culinários legados a mim pela minha vó. Eu faria daquele o melhor Natal para ele.
O que não era imediatamente tão difícil, levando em conta a falta de concorrência graças a sua perda de memória.
- Oi, cheguei.
- Oi... – ele veio mancando da cozinha, enquanto segurava o braço na tipoia. Começara a se movimentar melhor pela casa e já fazia pequenas tarefas.
- Tudo bem?
- Tudo. Deixa-me ajudar você com essas sacolas... Só as mais leves. Não quero me estripar.
Ele parecia estar escondendo alguma coisa. Posicionara o corpo bem na minha frente, de um modo um tanto estranho e desengonçado, ficando entre mim e a árvore de Natal perto da escada, e tapando meu campo de visão. Arrastou-me para a cozinha.
- O que você trouxe?
- Tira a mão daí! Caramba... Comes que nem um adolescente.
- Talvez eu seja.
- Ha, ha. Essa é boa. Olha essa cara. Tens até pé-de-galinha!
- Isso é porque eu sorrio muito, você não reparou? E você também não é nenhuma jovenzinha.
Eu nem respondi, pois já estava concentrada em outras coisas. De repente, perguntei, enquanto ele guardava – não com pouco esforço – o peru no freezer.
- O que você tá escondendo? E, ah, deixe isso do lado de fora. Vamos cozinhar agora.
- Algo mais, chef?
- O que está escondendo? Vamos, diga. Não quero ter que usar seu codinome.
Ficamos acordados que, enquanto ele não lembrasse o próprio nome, eu o chamaria de MacGyver.
Quer dizer, eu decidira assim. Havia pensado isso logo no primeiro dia, quando voltamos do hospital, pelo simples motivo de que ninguém sobreviveria a tantas balas e tantos traumas se não fosse, pelo menos, algum pseudo hiper-agente digno de filme.
Ele não teve como reclamar. Na verdade, nem contestou: não sabia mesmo quem era MacGyver.
- De onde você tirou que eu estou escondendo alguma coisa?
- Dá para perceber. São esses teus olhos que te entregam.
Ele me ignorou.
- O que eu posso fazer?
- Comece lavando as frutas.
Ele fez uma careta.
- E tente não morrer com isso.
No mais, a festa foi boa. Meus pais ligaram à meia-noite e tudo correu bem com a troca de felicitações. Sem muitas perguntas, apenas o contentamento de que a filha estava crescendo. Depois das doze badaladas, tivemos a ceia e, quando satisfeito e certo de que gostava mesmo de peru, tivemos a troca de presentes.
Até onde eu sabia, não seria uma troca. Apenas eu tinha saído e comprado algumas quinquilharias para dar a ele. Inclusive um rolo de gaze, numa espécie de piadinha de mau-gosto. Mas a surpresa foi grande quando descobri um pacote suspeito na árvore.
- O que é isso? – apontei para a caixinha e apanhei-a.
- Vamos, abra. É um presente meu pra você.
Deixei cair o queixo.
- Como assim? Quando? Tu...?
- É, eu comprei. Na verdade, não eu. O seu vizinho. Eu pedi que ele me fizesse esse pequeno favor. É um senhor muito simpático, por sinal, mas não pouco curioso. Enfim, contornado esse problema... Ah, claro. O dinheiro. Foi tudo pago com muita dignidade, ouviu? Eu gastei aquela grana que nós achamos no bolso da minha calça jeans, na noite em que vim bater aqui, ensanguentado.
- Eu lembro. Era uma boa grana.
- Mas o presente não é nem metade do que eu queria dar. O que você fez aqui comigo foi... Realmente... Algo estranho. Duvido que alguém mais fizesse. Na certa você pensou que eu fosse um bandido ou sei lá, mas eu não... Eu quero muito acreditar que não sou. E que esse dinheiro comigo era realmente meu. E com ele eu posso fazer o que quiser. E dar um presente a você. E agradecer pelo que fez até aqui. As roupas, a comida, a casa... Eu... Obrigado.
- Claro.
Não quis dizer mais nada. Estava extasiada, surpresa, atônita. Abracei-o.
- E agora é a parte em que você abre.
- Ah, desculpe! – eu ri. – Ainda estou meio pasma.
- Não fique. Até onde eu me lembro, as pessoas costumam ganhar coisas no Natal.
- Você não lembra – abri a caixa.
Era um colar, lindo, lindo. Uma corrente dourada simples contornada por pedrinhas coloridas. Talvez semipreciosas. O dinheiro dele daria para algo assim – mas só se gasto completamente.
- Gostou?
- É lindo... Mas acho que significa que tu gastaste todo o teu dinheiro e que eu não vou te ver longe daqui tão cedo.
Ele viu.
- Venha cá. Vamos experimentar nesse pescoço de ganso.
- Abusado.
Aproximei-me e, com delicadeza, ele apanhou o colar com a mão esquerda e colocou-o em meu pescoço de frente para mim, olhando-me nos olhos.
- Isso é tudo o que sabes fazer? – perguntei, esperando mais alguma reação quando ele apenas ficou olhando, distraído e concentrado, para o meu pescoço. Então me encarou e indicou o braço direito.
- Acredito que você vá ter que se virar com o fecho.
Revirei os olhos.
- Claro. Tanta galanteria não ia dar em nada mesmo! Como sempre, eu faço o trabalho pesado.
- Eu ajudei com as frutas, não ajudei?
Eu sorri e abracei-o de novo.
- Obrigada, é lindo. MacGyver.
Ele afastou-me com uma mão e beijou-me o rosto. Ficamos num silêncio constrangido até que eu desse um jeito:
- Vamos subir. Teu ferimento deve estar doendo. Vou fazer uma massagem e então volto para arrumar tudo aqui embaixo, está bem?
- Certo. Ajuda aqui com essa perna.
Subimos e ele, antes que pudesse disfarçar, logo cedeu ao cansaço. Estava exausto, e desabou na cama.
- Seu ombro tá latejando, não é? – perguntei depois de trocar os curativos no tronco. Ele nem precisou responder. – Não falta muito pra tirar os pontos, talvez semana que vem. Agora, vamos dar um jeito nesse ombro.
Obediente e calado, ele sentou-se ereto na cama para que eu ajeitasse o travesseiro bem direitinho às suas costas. Com a intenção de massagear-lhe o ombro, ajudei-o a tirar a camisa sem mangas, passando-a pelo tórax enfaixado e pela tipoia. Ele fez uma careta.
- Tudo bem aí? – perguntei penteando o cabelo louro escuro para trás, até ver a testa.
- Tudo. E agora? – ele olhou-me.
- O quê?- sussurrei de volta, sem entender.
Ficamos em silêncio um instante.
- Bia...
- Hum?
- Eu... Nada.
Por impulso, beijei-o. Bem de leve. Só encostei meus lábios.
- Desculpa.
- Shh... Não se desculpe por uma coisa dessas.
- Tá bom.
- Mas por que fez isso?
- Juro, eu não sei.
- Talvez devêssemos tentar de novo. Talvez a gente descubra.
Então eu sorri.
- Prometo ter cuidado.
Encostei-me de leve em seu peito e beijei-o. Esbarrei algumas vezes em seu braço, me empolguei, mas ele suportou tudo estoicamente. E me abraçou como se eu fosse de vidro, como se quisesse tocar minha alma. Quando percebi, não havia mais qualquer tecido, nem um fio entre nós. Ele ofegou quando pressionei demais meu corpo contra seu tórax, então desgrudou os lábios dos meus, a mão boa subiu até meu cabelo e enrolou-se nos cachos.
- Desculpe... Eu te machuquei. Fiquei empolgada – ri sem jeito.
- Acho que não existe uma maneira simples de fazermos isso – ele puxou o ar.
Preocupada, comecei a desmontar de cima dele, para que pudesse respirar.
- Afinal de contas – comentei - não é o MacGyver.
Então ele riu, segurando o estômago para não desbocar de vez.
- Calma, calma... – puxou-me de volta. – Espere. Deixe-me pensar.
Ele então me olhou com um brilho travesso nos olhos. Como se tivesse uma ideia. E disse:
- Você sabe cavalgar?

CASA, AMOR E GASOLINA (parte III)

A manhã acordou sincera. Sem nenhuma nuvem no céu, mas fria para os padrões de Macapá. Não chovia, mas o cheiro do orvalho estava ali, em algum lugar. Havia um homem com o dobro do meu peso sob mim e aquilo não me espantou.
- Meus pés amanheceram quentes, pela primeira vez – ele murmurou em meu ouvido.
Eu ronronei em resposta.
- Acho que te amo – ele beijou-me o cabelo. – Vá preparar o meu café.
Eu ri e rolei preguiçosamente para o lado.
- Ah, sim. Aí está a verdadeira intenção. Parece que ao menos o teu instinto masculino tu não esqueceste.
- Se é instinto, não dá para esquecer - ele beijou-me a nuca, sobre o colar delicado que ainda estava ali.
- O que acha de uma voltinha ali no deque, enquanto eu cozinho? Prometo subir rápido pra te chamar. E trago o teu bendito café.
- Tudo bem, eu vou – ele sorriu e custou a levantar-se, olhando-me esparramada na estreita cama. – Porque não quero nem ver sua cara quando lembrar a bagunça que está lá embaixo – ele fugiu para o deque.
Quando subi de novo com uma xícara na mão, encontrei-o debruçado, olhando para a rua molhada da noite. A vizinhança estava tranquila. Com exceção de um homem que passava àquela hora, tão cedo, bem em frente da casa com uma garrafa de coca-cola na mão, dessas de 2 litros, com um Papai Noel e enfeites natalinos ilustrando o rótulo, e cheia de um líquido amarelado e denso. Seu carro estava mais a frente, provavelmente no prego.
- O que estás vendo? – perguntei ao ver seu olhar fixo lá embaixo.
- Eu... Eu acho...
- Ei, o que foi? – olhei de novo para o homem que passava na rua, procurando o motivo para o espanto do meu desconhecido. – É só gasolina. Os carros precisam disso para sobreviver.
Ele riu. Quase.
- Eu sei. Lembro a parte técnica da coisa. Eu só não...
Franziu o cenho e eu me espantei. Ele começou a debruçar-se sobre si mesmo e oscilou, para frente e pra trás.
- Ai, não... Estás sentindo dor? – aquele homem nu no meu deque prestes a desmaiar com um estrondo e acordar toda a vizinhança não era nada bom. - Ei! Fala comigo! – eu bati em suas costas, longe do ombro fraturado.
- Beatriz...
Então ele riu e tentou segurar meu rosto com a mão. Estava estranhamente grogue, nauseado e esfuziante.
- Foi um acidente. Um acidente de carro. Eu não...
- Calma, senta aqui. Senta.
- Não quero sentar. Não posso sentar. Eu estava vindo de Santana. Passei pela penitenciária. Havia um tiroteio. Houve um tiroteio. Uma fuga. Estavam fugindo de lá. E eu passei bem em frente, bem na hora.
- Péssima hora, péssimo lugar.
- Shh... – ele calou-me com um beijo, aos risos. Seus olhos não estavam bem. Ele parecia zonzo. – Eu sei, eu sei, Bia. Eu sei. Eu não lembro bem quem eu sou, mas eu sei... Sei como aconteceu... Eu estava lá. Levei os tiros, no meio do fogo cruzado. Um carro, na correria, bateu na porta do passageiro do meu carro e me arrastou pela estrada. Talvez até o Cabralzinho, não sei. Demorou a chegar socorro. Não chegou ninguém. A polícia não parou. O carro, o outro carro que tinha me batido, entrou no meu pela porta do carona e esmagou meu braço direito. Eu me estraçalhei mais ainda até conseguir sair. Eu lembro o cheiro da gasolina. Podia explodir, então eu tinha que sair e me afastar o máximo que pudesse. Era um Honda Civic preto. Eu lembro.
- Calma...
- Eu saí do carro, me arrastei para longe. Perdi a consciência. Acordei. Me arrastei mais um pouco e então cheguei aqui. Na sua porta. Eu...
Foi nessa hora. Ele virou-se tanto para frente que oscilou de vez. Então seu corpo dobrou-se até que ele estava no ar, em queda livre até embaixo. Gritei e debrucei-me a tempo de ver o corpo nu passar arrastando pelo deque que se transformava na cobertura do alpendre e aí cair bem no jardim de frente para a entrada da casa. Estava morto.
Desatei desesperada a correr pela escada, envolta no lençol que apanhei às pressas, e deixei-me cair sobre ele lá fora. Chorei em suas costas. Estava de bruços. Tive que vira-lo, desesperada, para olhar seu rosto.
Ele abriu os olhos.
- Bia... – tocou-me a bochecha. Eu gritei engolfada em lágrimas, entre alívio e estupefação.
- Meu Deus! Meu Deus!
Ele abriu mais os olhos desfocados.
- Max. Max é meu nome. E eu não sou bandido... Sou só a porcaria de um engenheiro! - ele ri.
Então eu olhei fundo naqueles olhos cinza e ri também, e funguei, maldito susto!, e ri mais. E debrucei-me de vez sobre ele, enchi-o de beijos, e em meio ao riso, foi inevitável perguntar:
- Tu não morre nunca?


sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

LIQUEFAZER-SE EM ALEGRIA

O surrealismo o apavorava. A realidade também. Gatos que espreitam no escuro, noites de tempestade, comida azeda, mulheres lindas demais para ser verdade.
Ele tinha medo de flertar no trânsito – mesmo sem ter um carro –, de engolir uma moeda, de magoar quem quer que fosse, e por isso não tinha amigos.
Cigarras que cantavam de modo sinistro anunciando a queda da tarde, adeus ao pôr-do-sol, simplesmente o apavoravam. Ele andava sempre nervoso, as mãos nos bolsos, porque senão corriam o risco de cair. Cigarros jamais, cigarros matam.
Nunca comprara um carro, por receio de um dia, sem querer, arrancar o volante de seu lugar o perder o pouco controle que tinha.
Objetos domésticos não o obedeciam, cachorros enxergavam suas pernas como postes ambulantes. Crianças nunca sorriam. E nada era marcado, nenhum lugar reservado, nenhuma corrente amiga para aquele sujeitinho acabrunhado, amarelo, triste.
Ele era patético.
Mas um dia, que dia!, ele foi feliz. Há um longo tempo, por um curto instante...
Quem não trocaria uma vida inteira de exclusão e existência morna por um átimo de felicidade?
Ele trocou. Foi muito breve, muito breve mesmo, mas quem na realidade determina a vastidão dos fatos é a intensidade deles.
Ele estava no cruzamento de dois semáforos, afogando-se na massa de gente que guerreava por um pedaço da faixa de pedestres, quando veio aquele click – aquele click – que é sempre o prenúncio de que algo foi deixado escapar e era importante; o “click” tão bonitinho e tão mortal que soa em seus ouvidos quando você esqueceu seu filho na escola, a reunião importante na firma, ou o gás aberto. Tão perfeito som, tão útil estalo...
Ele se deu conta, naquele momento, de que até então só o que tinha feito em toda a sua vida fora escapar. Agora mesmo, ali, parado, esperando o trânsito infernal dar uma trégua em meio àquela noite fria, o que estava a fazer? Ele escapava da dura jornada de trabalho, escapava para um apartamento tão estático e sem graça quanto ele mesmo, escapava do mundo inteiro porque tinha medo. Medo. Duas sílabas. Medo de tudo. E junto com o click – o estalo baixinho no ouvido, aquela noção de que seu mundo vai mal e você precisa correr contra as circunstâncias – veio também a decência de, pela primeira vez na vida, correr – de encontro a, a encontro de.
E ele correu. Atravessou a brita crua pelo meio dos carros em movimento. Largou a pasta, que se abriu, fez voarem os papéis.
Gritou. Esperneou de súbita
extrema
suprema
felicidade.
Comprou uma caixa de cigarros, sem deixar de correr, estraçalhou um por um, e depois os comeu sem nem pestanejar.
Ainda frenético, rasgou o paletó, correu mais pelas ruas, um pouco mais, um pouco célere, tirou a gravata, amarrou-a na cabeça como um diadema, jurou que era Rambo. Professou em voz alta para quem quisesse ouvir. E as cabeças apavoradas viravam-se nas calçadas para fitar aquele louco.
O próximo passo foi subir no meio-fio, encostar-se ao parapeito do viaduto, pular de lá de cima e não sentir mais nada – nem medo, não, nem medo, nada de medo! – enquanto seu corpo caía numa velocidade sennômica em direção à água escura.
O mergulho foi tão gelado, tão bom, ensandecido, e as borbulhas que brincaram na pele como um beijo impossível da namorada que nunca existiu. Bem, bem, ele se liquefez naquele mesmo átimo, e por um instante de luz eu sonhei que quem se desfazia não era ele, era eu.
Acordei suado.

TEMPORAL

Que coisa mais engraçada é a vida, é a juventude... Eles se molham sob a chuva como se pudessem parar o tempo, como se pudessem congelar a imagem e viver esse momento para sempre. É bonito.
Mas até então estão bem, o ridículo é o que vem depois. Enquanto as roupas colam no corpo, o cabelo escorre, o jeans suado se aperta, a camiseta transparece, o som dos gritos e de uma alegria quase pueril se mistura aos barulhos e urros estrondosos da tempestade, a vida vai se consumindo em fogo brando, palpável. Mas numa lentidão tão feroz quanto o tempo que passa rápido, aquele que é na mesma medida tão célere e pouco palpável, indefinido.
É noite. Eles estão aí, brincando na água. Estão todos fora todo o dia, o dia inteiro fora de casa, sempre tão fora de tudo. Dá pra sentir o cheiro de orvalho, terra molhada, o calor do dia que sobe do asfalto em nuvens de fumaça, e o aroma inconfundível de hambúrguer, vindo de qualquer lugar, qualquer barzinho à meia-luz com um pingo de consideração para contratar um chef, mesmo que suspeito.
As ruas estão desertas de pessoas, vez ou outra passam carros. Escuridão. Apenas água, poças, pneus ocasionais que, ao percorrerem velozmente queimando borracha, espirram a água acumulada no meio-fio para a calçada.
Aqui só há a luz alaranjada dos postes, que em seu brilho intenso e ar lúgubre albergam uma nuvem de mosquitos procurando morte. Há uma forte despreocupação no ar, mas a tempestade contraria outros seres. Adultos, velhos, crianças dormem. Os que não dormem, ouvem a barulhada na rua, mas já se foi o tempo de se juntar a eles. Os trovões dão mais medo. Liberdade.
São estes jovens que até mesmo sem querer conseguem da vida aquilo que todo mundo quer, e não se dão conta: Felicidade. Palavrinha doce. Que corre na boca e então, no fim, parece despencar como uma caixa de chumbo e cravar-se na língua. Felicidade até quando? Até quando durarem as noites. Até quando durar o dia. Enquanto a tempestade não se for, e for assim, intensa, molhada, assustadora. Enquanto eles forem selvagens. E se houver dor, acima dela, estarão felizes. Ou não?
Se por acaso é real resta saber. Esses jovens que riem e chapinham na água da chuva... Ah, terão seus melhores dias. E dias felizes virão até que a juventude se apague. Não quando se apagar dos ossos, mas do peito. Já que é aí que ela mora.
Um coração bruto e jovem não se rende.

DROGA

Seguindo a mesma linha de raciocínio do meu amigo Pedro Bandeira... Essa droga de vida, essa droga de escola, essa droga de trabalho, essa droga de comida, essa droga de computador, essa droga de férias... Epa! Peraí. Droga de férias?! Quem pode ter dito uma coisa dessas?
A mania de reclamar às vezes nos pega de jeito. E estamos também tão apegados a ela, que esquecemos de desfrutar o momento presente, esse tal agora; o qual, se você olhar bem fundo, ou nem tanto, vai descobrir que é simplesmente maravilhoso... Então, para começar, por que amaldiçoar as férias? Esse excesso de negatividade e ranhetice fica para uma outra hora. Por enquanto, desfruta. Toma o que é teu por direito, esse mês ensolarado e chuvoso, e se vinga de uma vez do capitalismo. Vilão tão complexo que nos obriga a estudar durante a maior parte das nossas vidas. Esse. Esse. Esse. Que se repitam as palavras, deixa assim!
Ora, não reclame, quem sabe viva um pouco. Viva um pouco mais. Não quero mais alimentar essa mania de parafrasear e emprestar dos grandes autores, também não intento mais um "Filtro Solar" por aqui. Mas sobre chicletes e equações de álgebra, bem, curta o seu chiclete, e vá mascando até quando der. Acabou o açúcar, acabou o tempo da prova, cuspa, saia. Mas, gente, vamos aproveitar. Reclamem só quando estritamente necessário.
E deixem o lado rabugento comigo.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

BUROCRACIA

No meio do processo tinha um entrave
Tinha um entrave no meio do processo
Tinha um embargo
No meio do processo tinha um embargo
Nunca me esquecerei de mais este estorvo
Na minha vida de petições estagnadas
Nunca me esquecerei que no meio do processo
Tinha um percalço
Tinha um embargo no meio do processo
No meio do processo tinha um percalço

domingo, 31 de outubro de 2010

80's

O muro de Berlim caiu em 6 de setembro de 89. Ainda em 80, surgiram os CDs, a popularização dos compuradores, videocassetes e walkmans, a descoberta da AIDS, a morte de Tancredo Neves (em 85), deu-se a consagração do neoliberalismo - víbora de dois gumes -, aquele célebre atentado ao falecido papa João Paulo II, e praticamente as melhores bandas que ainda hoje ouvimos surgiram nessa década. Dire Straits, A-ha, Supertramp... Inaugurou-se a MTV, a música eletrônica se firmou, criaram o HIP HOP. O Heavy Metal surge como o poderoso do rock, o rádio e a TV massificam a cultura.
Às vezes tenho tanta saudade dessa época, e não entendo o por quê. Eu nem estava viva. Eu nem era ainda um projeto. E não sei porque toda essa nostalgia desmedida. Foi um período difícil para o Brasil, por que sentir falta? Não sei. Também não entendo. Mas a verdade é que os anos 80 têm para mim um cheiro de juventude, de cultura, liberdade, hormônios, beleza, desmedidos. Eu queria ter vivido aquela juventude, aquela adolescência. Mas não sei se então eu seria eu mesma. Sei lá. Será que estaria me drogando em algum beco obscura de NY? Deus me livrasse! Ou será que eu seria um protótipo de mauricinho(a)? Ai. Ah... Quem vai saber? A verdade é que os anos oitenta permanecerão ali, lá, já longe, cada vez mais longe, estagnando-se no tempo. Foi o divisor de águas... Estávamos no ápice, quem sabe, e então veio a ruína.
Gosto dos anos 80. Tenho sérias saudades.

sábado, 30 de outubro de 2010

MANTENHA-SE NO RASO

Divido então o que sei: são todos jovens, são todos palavras, silêncios. Vazios que gritam no escuro, como almas que mal sabem o que os aguardam. Um dia após o outro, passo por passo, e ainda assim, querem engolir o mundo. É isso o que sei deles, e divido com quem quer que os queira. É pouco o que sei, sim, admito. Como já disse, nem os entendo completamente. Afinal, quem entende os jovens? Não eu.
Mas, de qualquer forma, mesmo sem conhecê-los por completo, sou o único que sabe sobre eles mais que o necessário. Se me concentrar... Se me concentrar, posso até sentir a dor deles. Seus pensamentos, seus sonhos, sono agitado, medos, pavores, palpitações. Eles balbuciam no meio da noite, choram baixinho, nem sabem, nem imaginam que são assim tão desprotegidos. Nem eu posso imaginar quanta desproteção há neles.
Mas, se decidi mesmo deixar que os conheçam, então é melhor que os apresente de uma vez. Eles ainda não são inteiros, mas são pedaços, fragmentos de tanta gente, de ninguém, de tudo e de muito. Eles são... Como posso dizer? São jovens, afinal. O que se espera de um jovem? Que seja raso, que seja profundo? Só o que posso dizer deles é que, bem, em grande parte, ninguém esteve muito disposto a compreendê-los. Ninguém perde tempo. Por mais nobre que possa soar perder tempo com pessoas, ninguém o faz de verdade. E é por isso que eles são assim, tão tortos, tão mal acabados. Mas a vida cuidou de esculpi-los e arrematar o que tinha sido criado, deixando-os assim tão vivos, tensos, vibrantes, palpitantes, intensos. Eles são uma parte de um todo, e um inteiro, um pedacinho caprichoso, e lindo, e estranho, incompreensível. Eles são pequenos, nem ocupam muito espaço, talvez suas balbúrdias assustem, mas os famosos hormônios os absolvem. O que posso dizer mais? Só o que sei é que de nada são rasos. Não. E sabe o que dizem sobre os lagos? Os mais calmos é que são os mais profundos. Você jamais chegará ao fundo deles. É escuro, silencioso, agudo, lotado de tudo...
Águas brandas escondem pensamentos profundos. Toda a juventude de uma época está aqui. Talvez falte o brilho de uma década, a polvorosidade de outra, quem sabe a rebeldia da de 80, ou as mudanças da de 60. Mas, estão aqui. Todos eles. Essa juventude que salpica como óleo quente, fervente, uma pulga atrás da orelha, um livro que teima em cair da estante. Bem, eles são um lago (aparentemente) raso e calmo, falsamente cristalino, no qual eu não me atreveria a ir muito fundo, pelo simples perigo de me afogar. Enrolar-me em algas ásperas. Eles são, afinal, lagos quentes e serenos que escondem aqueles segredos que só se conta a si mesmo. Eles vibram, retumbam. Silenciosamente. Estão todos aí, e, se não há muito o que fazer, então, leia-os.

OS SEM-LICENÇA

Outro dia, na escola, meu professor falou, dentre outras desmotivacionais besteiras simplórias: [...] "É que os poetas dispõem de uma coisa que nós não temos - licença poética".
Opa! Espera aí. E os outros, como é que ficam? Os que não são escritores, não são compositores, não são poetas - ou poetisas, que seja -, como é que fazem? Como é que eu fico?
Eu preferia que naquele momento você fosse engolido por um peixe, professor.
Como é que eu fico? O que é que eu vou fazer da minha vida se eu, que não sou ninguém, não tiver a minha licencinha, a minha licençona poética? Mas nãããão!
Eu também preciso viver, preciso pensar, preciso escrever livremente. Eu me habituei a isso, campeão. Então não tire isso de mim.
Mas que coisa. Fico até agora me perguntando como alguém pode saber (ele diz) alemão, a língua aglutinadora, e ainda assim vir dizer que o pobre povo, ordinário (no elementar sentido de "simples"), a massa sonhadora e aspirante, não pode desfrutar da licença poética?
E só de graça, sabe o que eu fiz? Me rebelei, é isso mesmo. Estamos de mal até segunda ordem, eu não fiz mesmo o seu trabalho, e espero que você nao leia isso aqui.
Ah, mas que saudades daquele antigo professor que tanto nos motivou! Volta... Eu clamo.
Triste fim para o atual professor de português. Engolido por um peixe. O peixe da cegueira.
Até reconhecer que o meu eu-lírico também pode usufruir de umas doses de anarquismo literário.
Viva a literatura desmordaçada!

JANE EYRE


Que filme lindo! Não é nenhum Titanic, nenhum Avatar, ou a videografia do Justin Bieber, coisas que a aclamação pública insiste em sacralizar. É simplesmente a versão antiga, em preto e branco, para o cinema, de um livro clássico e belíssimo da literatura inglesa.
Agora, estou lendo o livro. Sim, lindo. E claro, bem mais detalhado, mais denso, um bocado mais profundo que a película. Gostei do filme, assisti com a minha mãe, num canal de clássicos da TV a cabo.
A verdade é que o livro da Charlotte Brontë estava no meu computador há séculos (ei, não me julguem!), tinha baixado há algum tempo a fim de conhecer melhor a obra ao vê-la sendo citada em inúmeras outras fontes.
Mas então, à época, depois de protelar mais ou menos uns seis meses, desisti de ler o tal clássico - na verdade nem comecei. Foi mais ou menos o que aconteceu também com um outro livro que baixei, uma peça do Shakespeare. A Megera Domada, que abandonei após ler só até a metade. Bom, mesmo já sabendo o fim da peça - o que normalmente me motiva potencialmente a prosseguir - acabei deixando A Megera de lado, e releguei-a à pasta "Nunca Lerei" no PC. Enfim, o mesmo destino acabou tendo Jane Eyre, por pura tolice minha.
Mas então, a um golpe qualquer da vida, lá estava eu, ligada ao TCM - que, louvado seja Deus, não tem intervalo - e me rendi inteira à doçura dramática, à simplicidade antiga do filme baseado na obra de mesmo nome.
Gostei bastante, ainda estou em estado de graça. Gostei de ouvir um homem rude - ou, quem sabe, apenas escravo de uma terna e cativante brusquidão -, se declarar com algo do tipo: "Mas como assim, não está chorando?! Posso ver as lágrimas agora mesmo, boiando aí nos seus olhos, quase a ponto de cair"... E vê-lo render-se irrevogavelmente a um par de "mãos geladas".


* Caramba, não consigo pronunciar esse sobrenome! "Jane Rrrrrrr"...

AMOR DE TRAVESSEIRO

Um amor de anedota, um amor de folhetim, um amor de vanguarda, um amor de verão...? Nada disso se compara a um "amor de travesseiro". Amor inexplicável, que surge do mistério, do mistério de cada dia, e cada dia um dia-a-dia.
Quando eu digo que te amo, é porque te amo mesmo. No travesseiro, na cama, fora dele, em qualquer lugar. E seu eu não digo com palavras, digo com olhos, então me olhe.
Às vezes, eu digo mesmo, tanta besteira, tanta coisa pouca... Mas o que eu quero? Te quero, ora! E quando eu digo que não quero nada, quando eu digo que pra mim já chega, quando eu digo que estamos por um fio, que eu não quero conversar, que eu não quero brigar, só o que que eu quero dizer é: "Me abraça".
O meu amor de travesseiro é você. Quem mais? Um amor que eu ainda nem descobri de todo.
Chego em casa exausta, os pés latejam, os olhos ardem. Você me espera. Na cama? Talvez. Deitado no sofá, a TV ligada, a cochilar, um locutor de esporte - um jogo qualquer - a falar de coisas que eu não entendo, mas que você curte e entenderia, se nesse momento não estivesse pescando no sétimo sono.
Eu me aproximo. Talvez um tabefe. Um tabefe leve, carinhoso. Não, poderia ser mal interpretado. E só o que eu quero... É pular, me rasgar, me debruçar inteira, me expor, me mostrar, e dizer: "Vê só? Essa sou eu. E ainda continuo apaixonada por você desde aquele primeiro dia".
Então uma canção tira sarro de mim no rádio. "If you fall for me...". Eu sorrio. Algum rádio distante, não, um iPod conectado, a vizinha, a pré-adolescente, nada de rádio, os tempos mudaram. E eu sorrindo, parada na sala, a te contemplar, sabendo quão boboca é ser durona e estar apaixonada.
Amando um cara com quem você está há... Há quanto tempo? Quando se casaram? Ontem, hoje, dois anos, dez anos atrás? Nem sei, não sei bem. Sei que esse momento eu não troco. Porque é tão difícil separar um em que eu não esteja gritando com você... E eu odeio fazer isso... Gritar, brigar contigo, te xingar e te abraçar, para então ir dormir nos teus braços. Pois é. Suspiro. "Se você ficar caidinha por mim..." Ah, meu querido, eu já estou.
Eu me ajoelho. Eu deixo a pasta logo ao lado, ajoelhada também, no chão. E te olho. E meus olhos se enchem de uma água misteriosa, que coisa mais engraçada! Eu nunca choro. E quero tanto dizer que te amo, eu... Você acorda.
E sussurra bem baixinho um oi, um sorriso, mas a voz é rouca, áspera de sono. E sua mão, como se tivesse nascido ali, como se nunca tivesse saído, sobe pelo ar e pousa no meu rosto, na minha bochecha esquerda, até que eu incline a cabeça assim de leve, a fim de repousar nos teus dedos. O que é, hein? O que conseguimos, o que construímos, como sobrevivemos sem que eu destruísse você? É que às vezes sou tão má. E tenho medo de não ser capaz de contar a novidade. Será que ele vai gostar?
Ele me beija. Percebe que estou mexida, mas não comenta. Sempre tão doce, tão calado, tão calmo e tranquilo. Um cara tranquilo. O que será que faz comigo? Sua mão descobre a blusa e me descobre. Apalpa o seio. Aprofunda o beijo. Me puxa para cima, sobre ele, no sofá. Rostinhos colados, tenho quase medo. Ainda não superei essa fase?
Ele me pergunta se estou bem, subindo a mão pela minha coxa. Estou, é claro, estou, estou bem, como não? O medo é daquela outra parte, aquela em que fico em dúvida se você ainda me quer ou não. Se vai aguentar, se vai me aguentar até o fim. Porque sou tão má, tão maldosa, tão egoísta, tão cheia de coisas. Explodo com facilidade, grito, esperneio, chantagista, e depois jogo tudo em você. Mas que coisa, cara, o que é que você fez comigo? Me transformou numa molenga e depois atira a minha saia de linho fino num sofá à meia-luz, seis horas da tarde de uma tarde de locutor de esporte.
Te amo. Te amo mesmo. Me desculpe por tudo o que falei, por tudo o que disse, por tudo o que gritei.
Aquela noite, eu não consigo esquecer. Eu estava tão brava com você, brava comigo, por não ser mais delicada, por sempre te espezinhar, e por te fazer fazer um esforço duplo, o meu e o seu, pra esse casamento dar certo. E então eu estava chorando, chorando baixinho, porque odeio chorar, odeio ser fraca, de costas para você. E não suportando mais aquelas duas horas que passamos de mal, de repente você me busca debaixo do edredom, sobe no meu travesseiro - sua cabeça ocupa todo o espaço! - e então eu reclamo, rindo, rindo do meu amor de travesseiro, que me pede desculpa até quando eu sou a culpada, quando causei a briga e não sei fazer mais nada. E ele me pega, me olha assim tão fundo, diz que o meu nariz está gelado, mas que ele não se importa, e me vê chorar. E eu ando tão triste, tão confusa. Agora, calma, ele me pergunta o porquê. Não quero dizer, não tenho certeza. Ele me abraça, me aconchega, me faz um cafuné, me enche de desejo. E então eu percebo que não quero outra coisa além de um amor de travesseiro.
Talvez um amor de travesseirinho.
E meus olhos na sala se enchem de água.
- O que foi, amor?
- Estou chorando.
- Eu sei. Percebi. Mas por que é?
- Porque você me suporta.
Ele ri.
- Quero te contar uma coisa.
E me beija e estica a alça do sutiã.
- Vamos em frente.
Eu respiro fundo. Quero arrancar os pulmões. É ele, o meu prometido, o meu comedor de sapos, um verdadeiro príncipe. Eu sou rã.
Então eu solto o ar lentamente. Olho nos olhos dele, que tira uma lágrima sacana que teima em rasgar o momento. E uma trilha de fogo daqueles olhos castanhos. E é tudo o que eu preciso.
- Estou grávida.
E ele me olha. E explode de alegria. E chora e ri, e me põe de lado, esquecendo por um momento que sem mim não há cria. Mas então me pega de novo, de pé, me gira, e depois me olha preocupado, se perguntando se me chacoalhar pode ser ruim para o bebê. E como é que pode? Eu demorei duas semanas para perceber, mais duas para entender, três dias para confirmar, e mais dois para me acostumar. E ele age assim, em menos de dez segundos.
Ah, o meu amor... Um amor de travesseiro. Que à noite, de madrugada, quando acha que eu estou dormindo, percorre minhas costas com os dedos, beija meu queixo, e me puxa pra perto.
Um amor de travesseiro.
Agora são dois.

domingo, 17 de outubro de 2010

AINDA TENHO MUITO A DIZER

Principalmente quando não digo nada. Quem sabe um gemido rouco, um grito ao alto, uma asa que corta o céu. Gosto quando sou só eu e o fundo, uma prisão infinita, um rasgo no mar de palavras não ditas, e que por enquanto permanecerão assim, silentes, mas não estagnadas.
Gosto do cheiro das palavras, gosto de tocá-las, de sentir o gosto delas na ponta da língua quando ainda nem sequer as mastiguei. Primeiro é sonho... O momento da antecipação.
Tenho ainda a dizer o que não digo. Tenho fundura, rastro, certeza, mil dúvidas, um eco. Grandezas proporcionais, o toque de um som, a sílaba que cai no hiato, e o verso que às não vem.
Então fico muda. Mudez improdutiva, estéril. Quando não consigo dizer no silêncio aquilo que tanto quero gritar. Dois silêncios diferentes, cada um, a seu modo, arrasador. E essa loucura de não poder dizer o que se sente!... De ser tão amigo das palavras silentes, tácito acordo, e quando se precisa delas, elas somem, fogem, escapulem (escapolem, escapulam?), escorregam naquele brinquedo da infância e vão para longe, onde não podemos alcançá-las, onde eu não posso alcançá-las, distante demais para lembrá-las, ou ainda longe demais que as não conheço.
E gosto desses silêncios. Prefiro o primeiro. Quando a minha voz me entende melhor do que entende todo o mundo ao redor que finge que sente algo que realmente não se diz, não se fala, mas carrega. Eu e o meu silêncio, assim, de lado, de banda, de acordo. Sou mais bela com ele.

sábado, 16 de outubro de 2010

AO MEU MENTOR

Ainda lembro a primeira vez em que o vi. Branco, cabelos de um tom indefinível de castanho, desses louros assim, meio escuros, meio acabrunhados. Aparelho nos dentes e boné. Meu Deus, quem diria que era um professor? Ele é. Mas foi além, muito além disso. Ele foi o meu mentor desajustado, dos ajustes mais perfeitos, mais sinceros, mais bacanas. Encaixou. Pude até ouvir um "clic" quando a ficha caiu: "É ele!".
Confesso que no início menosprezei, por medo, eu estava amedrontada. Mas isso durou apenas uns dois, três minutos. Até que sua primeira aula começou e eu entendi que era ele. Ele e ele. Engraçadíssimo. Sacana. Eu tentei... Mas o riso explodiu, inevitável!
Eu sinto uma saudade imensa porque este homem-rapaz foi para mim muito mais que um mestre. Ele deu valor a coisas minhas que ninguém jamais deu... Como uma boa resposta, como citar Paulo Leminski e a poesia marginal numa prova. Ele deu valor a uma sede que existia aqui por dentro - esse meu interior ainda misterioso - e eu nem ao menos conhecia sua extensão: a sede de escrever. De viver. Meu Deus... De viver! Eu só devo agradecer.
Um homem inteligentíssimo. Um garoto. Inefável. Poderia ser meu irmão mais velho, imaginem só. Ouvir suas histórias, contos incisivos, picantes, azedos, melados, lindos, bons, era como ser transportado com um chute no estômago até um local inimaginável. Cores escorrendo pelas paredes, o sonho e o talento vibrando por cada acento agudo na voz, quem sabe uma batida sussurrada, o eco que assenta, e o fim magistral.
Eu amei cada segundo com esse professor. Eu amo. E muito. Ora, nem me contradigo! Por mais complicada e indecisa e desajuizada que eu seja - por ter deixado arrefecer nossos caminhos cruzados, o meu e o dele -, ainda assim digo sem errar: Ele foi o meu mestre literário. O original. O primário. O primogênito que atiçou minha mão direita, com a qual escrevo. Ele foi maravilhoso. Ele é.
Bruno. Pardo. Moreno. Nem é. É branquinho... Aparentemente calmo. Mas experimente provocá-lo. Não, não experimente.
Sabe-se lá por onde anda agora. Será que lembra de mim? Será que sente saudades? O meu letrado futuro doutor. Mestre já é. Certeza. O nosso. De uma turma inteira. Não só uma turma, mas uma trupe barulhenta e ainda assim acanhada de amigos que foram consquistados com um tiro no peito. Irrevogável.
Hoje, esse sangue nostálgico e saudoso que escorre do trauma de bala é o mesmo rio que flui e jorra dos meus dedos quando quero meditar, escrever. Penso nele, aquele professor, e fico matutando... Eu também quero vencer. Vencer a mim mesma. Vencer as circunstâncias que diziam ser improvável que um coração interiorano caísse nas graças do mundo vasto mundo.
Ainda penso nele quando escrevo, penso em vitória, em cansaço, em sirene. Meu mentor. Sem seu estímulo teria sido tudo muito mais lento. O que posso dizer? Veja se volte. Tenho saudades. E o que mais? Obrigada. De B para B, mil vezes: Obrigada!

Ao meu mentor.

OLHA A GENTE!


Saiu no jornal. Da esquerda para a direita: Bianca, Alberto, Rapha, Álvaro e Bárbara (eu).

SEJA UM IDIOTA

Aos que julgavam uma desvantagem.
Texto de Arnaldo Jabor, o polêmico sem causa.


A idiotice é vital para a felicidade. Gente chata essa que quer ser séria, profunda e visceral sempre. Putz! A vida já é um caos, por que fazermos dela, ainda por cima, um tratado? Deixe a seriedade para as horas em que ela é inevitável: mortes, separações, dores e afins. No dia-a-dia, pelo amor de Deus, seja idiota!
Ria dos próprios defeitos. E de quem acha defeitos em você. Ignore o que o boçal do seu chefe disse. Pense assim: quem tem que carregar aquela cara feia, todos os dias, inseparavelmente, é ele. Pobre dele. Milhares de momentos acabaram-se não pela falta de amor, dinheiro, sexo, sincronia, mas pela ausência de idiotice. Trate seu amor como seu melhor amigo, e pronto. Quem disse que é bom dividirmos a vida com alguém que tem conselho pra tudo, soluções sensatas, mas não consegue rir quando tropeça? hahahahahahahahaha!…
Alguém que sabe resolver uma crise familiar, mas não tem a menor ideia de como preencher as horas livres de um fim de semana? Quanto tempo faz que você não vai ao cinema? É bem comum gente que fica perdida quando se acabam os problemas. E daí, o que elas farão se já não têm por que se desesperar? Desaprenderam a brincar. Eu não quero alguém assim comigo. Você quer? Espero que não.
Tudo que é mais difícil é mais gostoso, mas… a realidade já é dura; piora se for densa. Dura, densa, e bem ruim. Brincar é legal. Entendeu? Esqueça o que te falaram sobre ser adulto, tudo aquilo de não brincar com comida, não falar besteira, não ser imaturo, não chorar, não andar descalço, não tomar chuva. Pule corda! Adultos podem (e devem) contar piadas, passear no parque, rir alto e lamber a tampa do iogurte. Ser adulto não é perder os prazeres da vida – e esse é o único “não” realmente aceitável. Teste a teoria. Uma semaninha, para começar. Veja e sinta as coisas como se elas fossem o que realmente são: passageiras.
Acorde de manhã e decida entre duas coisas: ficar de mau humor e transmitir isso adiante ou sorrir… Bom mesmo é ter problema na cabeça, sorriso na boca e paz no coração!
Aliás, entregue os problemas nas mãos de Deus e que tal um cafezinho
gostoso agora? A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios.
Por isso cante, chore, dance e viva intensamente antes que a cortina se feche.

(Arnaldo Jabor)


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sexta-feira, 15 de outubro de 2010

+ 21 maneiras simples de driblar a timidez


Classificação: Para os desesperados

Quando criança, eu era extremamente tímida. Quem convive comigo hoje - e nunca lidou com meu eu do passado - certamente não me reconheceria lá pelas orlas da infância. Por tal motivo, resolvi escrever este artigo aqui de utilidade pública. Para que todos os tímidos possam um dia - ou daqui a dois minutos, quando terminarem de ler a postagem - se tornar grandes ex-tímidos, graças a essa tonelada de palavras de estímulo - que nada mais são do que besteira -, mas que ainda assim podem fazer proezas pela sua vida (que até agora foi tão auto-depreciativa e flagelada, à margem das delícias de ser um ser social). Pois bem, aos que duvidam, eu garanto: todas essas sutilezas aqui descritas foram testadas por amigos, conhecidos, parentes, e até por mim mesma - tornando-me este ser de um metro e meio que hoje não teme ninguém. E se não funcionar com você, bem... É o caso de procurar um especialista.

1. O primeiro percalço a ser driblado nessa sua trajetória é, sem dúvida, ir a um supermercado 24h vestindo pijama ou de pantufas (de preferência à noite, óbvio).

2. Diga "oi" para a moça do bombom.

3. Agradeça quando algum porteiro abrir a porta para você.

4. Sorria ou converse no elevador (até mesmo sozinho, se for o caso), soltando comentários rasos e frases educadas.

5. Nunca se esconda na hora do "Parabéns", nem fuja no momento dos discursos. Isso faz parte de um processo de conhecimento importantíssimo. E se mandarem você dizer alguma coisa, retruque, sorrindo: "Até parece!"

6. Se você for um menino em período escolar, experimente ultrapassar o muro de Berlim invisível no meio da sala (bom, isso existia no meu tempo), e sente-se ao lado das meninas. Se for uma menina, sente mais perto dos meninos, mas sem parecer muito atirada, ou descole umas amiguinhas extrovertidas e se infiltre.

7. Não fuja da roda, nas festinhas à la boite.

8. Ouça música boa. Deixe de lado essa metálica que te acossa!

9. Compre um chapéu de frevo. Use-o. Eu te desafio.

10. Pegue leve quando te derem uma zoada. Desencane. Rir de si mesmo faz tudo parecer tão mais fácil!

11. Crie um blog para falar de besteiras, tudo o que vier em sua cabeça. Extravase. Qualé, pessoal, os blogs não estão assim tão defasados... Tem tanta gente ganhando dinheiro com isso. Tente até um videoblog, se embarcar nessa de uma vez.

12. Coma com a mão. Em restaurantes meio chiques, pizzarias, na casa da sua avó... Não importa. Assim, quem vai sentir vergonha por você são os outros. Bacana, né?

13. Cante alto no karaokê do shopping. Cante na rua, no carro, no ônibus. E se alguém rir do seu desafino, solte uma piscadela das boas.

14. Vire o boné. Desabotoe a camisa. Sacuda o cabelo. Uns tapinhas na cara.

15. Solte uns peidinhos na frente da sua mãe.

16. Aprenda a barganhar.

17. Coma sua meleca. E não se afobe com quem criticar. Nada de ficar vermelho. É sua mesmo. E o que vai, volta.

18. Converse mais com seus parentes, torne-os chegados. Eles sempre dão um jeito de expor os seus defeitos de uma maneira leve e engraçada, de modo que isso também vai perder o peso depreciativo para você, tornando-se apenas o que são de verdade: meros defeitos. E não desculpas para um suicídio.

19. Leia gibis publicamente. Por quê? Sempre vai ter pelo menos um cara no seu círculo de conhecidos que lê também, mas nunca teve a audácia necessária para admitir. O resultado? De tímido, você vira o interessante corajoso.

20. Não tenha medo de errar palavras, dizer besteiras. Todo mundo erra mesmo, isso até eu já aprendi. Se for o caso, se enturme com um nerd por aí e faça ele te ensinar umas frasesinhas impactantes. E mais: conte umas piadas, que tal? Nunca esperaram isso de você, não é? Por isso mesmo. Vindo do ser mais impróval, se torna ainda mais engraçado.

21. Por fim, a regra de ouro. É simples, é íntima: nas apresentações de slide, trabalhos, eventos e afins, improvise, não se prenda ao manuscrito, diga aquilo que absorveu. Olhe reto. Olhe na cara de quem te assusta. Olhe bem nos olhos do professor. Olhe bem no rosto do seu sonho de consumo. Seja na faculdade, na escola, no seminário. Demonstre confiança. Olhe nos olhos de todos eles. E pense: "Venci."

DESABAFO REVOLUCIONÁRIO


A preguiça nada mais é do que um bicho engraçadinho e lento-rastejante, que sobe em árvores e tem uns olhinhos marejados. É um mamífero que, assim como os ursos – que hibernam durante todo o inverno –, nos ensina uma verdadeira mensagem de vida: por que perder tempo com meias palavras, se você pode simplesmente dormir e poupar energia para momentos críticos, quando o clima o impede de caçar? Ou ainda, seguindo o exemplo deste animal tão sábio que é a nossa querida Bradypus, por que não se arrastar esplendorosamente pelo chão de húmus da floresta, curtindo o clima tropical e o carregado arzinho amazônico?
De verdade, quero entender por que o senso comum condena todas essas coisas. Mas se a preguiça é algo tão lindo, minha gente! Veja ainda os políticos, por exemplo. Eles fazem da inércia o seu padrão de vida... E os gregos? Do ócio, a flor primária do saber, a filosofia!
Eu simplesmente não entendo. Mas deixo esta questão no ar. Àqueles que puderem me responder, mandem um e-mail, mandem cartas. Quero entender porque a preguiça é tão mal vista, tão julgada, tão arrasada por todos. Ora, quem nunca se espreguiçou, que atire a primeira pedra! Todo mundo tem ao menos uma “ex-preguiça” para contar. Admita. Esse corpo-mole não mente.
E só para situar, essa eu compartilho com vocês: o que eu ouvi de gente reclamando durante as eleições... Não foi brincadeira não. Gente que faria de tudo para escapar do segundo turno. "Sair de casa para votar de novo? Mas que chato!". E sabem o que mais? Está certo. Essa democracia não serve para nada mesmo... A solução é nos arrumarmos, daqui para frente, com o que tiver. Vamos proclamar a preguiça nossa única representante federal, municipal, estadual, orbital... E assim a gente escapa de mais um pleito de fastio.
É claro, a ideia ainda precisa ser amadurecida. Vamos construir uma teoria de peso, e, assim, aguardo sugestões.
Mas não contem à vovó esta minha confissão. Ela ainda espera que eu vá arrumar a bagunça instalada há meses debaixo da minha cama... Mas quem sabe eu ainda tomo coragem e respondo na cara dela: "Ah, vó, no dia que arrumarem o Brasil, a gente conversa!".

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

DIA DE DOR, DIA DE ALEGRIA

Minha bisavó morreu hoje, com mais de 90 anos. Foi atropelada. Um dia de tristeza, mas, ainda assim, de alegria... Porque ela morreu com Jesus, e sabemos que, como a Bíblia diz, a morte é lucro para aqueles que partem com o Senhor!

terça-feira, 24 de agosto de 2010

UMA DOSE DE ESTROGÊNIO


Ao longo dos anos, nossa sociedade vem crescendo e ocupando cada centímetro de terra no mundo, de modo cada vez mais célere. O avanço tecnológico e tantos outros recursos mecânicos possibilitam aos seres humanos - que, ao contrário de suas máquinas, são constantemente dominados por suas emoções e fraquezas e julgados por seus atos - atinjam o apogeu do desenvolvimento econômico, social, e também pessoal. E tão inerente a este exorbitante avanço e progresso quanto as próprias conquistas, persiste ainda, em nossa sociedade (formada por seres humanos falhos e limitados), as mesmas segregações e prévios conceitos (preconceitos) de outrora.
Pobres e ricos continuam separados por um abismo, e pouca coisa tem sido feita a fim de mudar a condição dos que têm menos, ou pelo menos extinguir a divisão de classes e buscar distribuir cultura e estudo a todos, de modo que as chances na sociedade se equiparem.
Doentes, mentais e físicos, continuam esbarrando na intolerância dos ditos “sadios”. A igualdade é encarada como algo impossível, mas o que se esquece nestes casos é que tal conceito, “igualdade”, independe da condição física ou psíquica de alguém, pois ainda que todos fossem livres de mazelas, continuaríamos a ser diferentes, tanto em personalidade quanto em aparência. E com isso se entende que a igualdade entre as pessoas não é caracterizado como estabelecer semelhanças entre elas, mas sim possibilitar as mesmas condições, chances e privilégios a todos. Isso é igualdade.
Pessoas de etnias, raças, cores diferentes continuam a enfrentarem entre si um preconceito racial que, por mais absurdo que pareça, persiste desde o início dos séculos e das descobertas dos novos mundos pelos desbravadores europeus.
E, além de todos esses e os outros exemplos de desigualdades e preconceitos sociais, há ainda a constante e sufocante busca pela desigual igualdade entre homens e mulheres.
A separação dos gêneros talvez seja a mais antiga e extenuante batalha do mundo, já que não principia dos dias atuais, mas vem impregnando as mentes desde que o conceito de “pintando na caverna” foi construído.
Na Grécia antiga, na cidade-estado de Atenas, as mulheres eram vistas na pólis como o mecanismo gerador de filhos e prazer, nada mais. Eram excluídas das decisões políticas e nenhum direito lhes era concedido além do de existir. Péricles declara que “as preocupações sociais não lhe dizem respeito”, por isso devem ser mantidas trancadas dentro de casa, habitando seu espaço denominado “gineceu” dentro do lar, e zelando apenas por questões domésticas, sem ir contra a intervenção do marido.
O homem podia também repudiar a sua mulher, sem precisar expor pretexto algum, com a única condição de lhe restituir o dote. Da mesma forma como lidamos com objetos.
De fato, nas sociedades antigas, as mulheres não eram nada muito além disso. A situação delas era não só de inferioridade e submissão ao poder masculino incontestável, mas também de humilhação e miséria psíquica. E de pensar que os atenienses inventaram a democracia primitiva...
Em Esparta, as mulheres eram tratadas com um pouco mais de apreço. Recebiam, igualmente aos homens, a educação militar, sendo preparadas para assumir funções de administração pública quando os homens estivessem fora da pólis, nas batalhas. Apesar de os espartanos serem homens lacônicos e taciturnos, de hábitos severos e sem luxo, militares na essência, eles prestavam atenção às mulheres e lidavam com elas de modo um pouco mais maleável. Aturavam-nas. Isso porque acreditavam que elas podiam interferir no ato de parir bons guerreiros. Cuidavam relativamente bem de suas mulheres porque queriam que elas dessem à luz seres fortes e sadios.
E hoje, depois de séculos passados desde essas primeiras mentes e parâmetros sociais, ainda persistem as injustiças. Em algumas tribos e aldeias africanas, por exemplo, os homens sacrificam as mulheres arrancando-lhes o clitóris. Elas são abstidas de receber prazer na produção de petizes, no ato sexual. Não seria este mais um preconceito falsamente maquiado pela capa do rudimentar?
Essas desigualdades e maldades para com o sexo “frágil” persistem. Muitos homens afirmam que as mulheres já ocuparam seu espaço e que devem dar-se por satisfeitas. Mas devemos refletir mais a fundo sobre isso. Será mesmo que o sexo feminino é reconhecido como sendo forte, inexpugnável e capaz, tanto quanto os homens o são?
A resposta para tal questão é negativa. A mulher pode ter conquistado muitas coisas ao longo dos séculos, no entanto, o que elas buscam não é apenas a ascensão social. As mulheres de hoje querem, além de ser reconhecidas, serem tratadas como gente pensante e apta a mostrar muito mais do que centímetros de pele e quadris rodopiantes. As mulheres desejam ter salários iguais aos dos homens, sendo que muitas delas exercem as mesmas funções e ganham menos que eles. As mulheres desejam que não as subestimem quando são encarregadas de tarefas intrincadas e de risco, porque de fato são capazes de fazê-lo, e assim como todo ser humano, o que as mulheres buscam é não só um voto de confiança, mas seu espaço merecido, um espaço que lhes foi negado desde o início das sociedades, e que, mais tarde, lhes foi devolvido como um direito, mas pelo qual elas ainda lutam até hoje, o que só atesta a discrepância entre os sexos e o modo desconfiado como os homens ainda encaram as realizações femininas.
A conquista de direitos e espaço das mulheres ao longo dos anos, só serviu para que a sociedade se tornasse apenas minimamente mais democrática – a visão machista de que as mulheres não devem ser nada além de donas de casa perdura através dos séculos e, por mais irônico que seja, detrás do comportamento “moderno” que possuem, muitas mulheres de fato acreditam terem nascido para a cozinha.
As buscas incessantes das mulheres pelo sucesso é a prova de que as injustiças continuam firmes e intocáveis. O abismo entre homens e mulheres subsiste, e o conceito de “justo” e “injusto” permanece relativo e mutável.
A única certeza que nos rege, então, é a de que as mulheres são seres dotados de inteligência, assim como os homens, e ao contrário deles, de sensibilidade, percepção infalível, emoções complexas e sagacidade nata – o único estorvo que as impede de dominarem o mundo é o fato de competirem umas com as outras, competirem consigo mesmas, e ainda competirem com os homens, numa busca um tanto cruel e desigual pela perfeição e pelo êxito, a qual se transforma, muitas vezes, numa condenação mais cruel e estressante que o próprio preconceito.
As mulheres não querem deixar de ser mulheres. O que as mulheres buscam é algo mais profundo, vai além de meras posições e direitos vagos garantidos pela lei e esquecidos na prática do dia-a-dia. O que as mulheres buscam é deixar de estarem aquém de outros seres humanos, no caso, os homens, porque nessa relação, nenhum dos dois – nem homem nem mulher – foi criado para ser inferior. Ambos existem para se completarem, trabalhem juntos e terem as mesmas oportunidades.
As mulheres jamais esqueceram que não possuem tantos músculos quanto os homens, e nem que são, em alguns aspectos físicos desfavorecidas e desprovidas de força bruta. No entanto, a massa encefálica é a mesma. Portanto, a capacidade de produzirem e progredirem, de construírem uma sociedade cada vez mais sustentável e desenvolvida é a mesma. É possível ainda dizer que as mulheres tenham até outros dons que compensam a falta de músculos e da tal força bruta, como, por exemplo, o dom de ser mãe. O dom de entender tudo com um olhar, de estar atenta aos detalhes e não subestimar os assuntos referentes à emoção, sem deixar as questões racionais de lado.
Será difícil mudar anos e anos de história, transpor toneladas de pedras sobre as quais estão erguidas as ideias e os conceitos da nossa sociedade hoje. Mas devemos estar certos de que podemos construir novos rumos.
Ainda estamos longe de obter o êxito completo nas batalhas, o que muitas vezes tem se mostrado um esforço hercúleo por parte dos lutadores, mas novos horizontes já vêm despontando ao longe; e o simples fato de podermos falar sobre o assunto e expressar opiniões a respeito do buraco de desigualdade que existe entre homens e mulheres, já é a prova indiscutível de que algo está mudando em nossa sociedade.
Amanhã, quando olharmos para trás e buscarmos as raízes de nossas conquistas, lembraremos sempre de que nada poderá ser construído sem que haja parceria. E agradeceremos àqueles que lutaram por tal coisa. Pela parceria e, acima de tudo, pelo dissipar de ideais anacrônicos e tendenciosos.
Lembraremos amanhã dos que hoje lutaram pelo despertar de mentes, e por um novo conceito: O de que mulheres e homens possuem a mesma capacidade de cultivar o mundo.

SEREMOS SINCEROS

Do tipo de gente que sempre, sempre lê as duas últimas páginas do livro antes do fim. Daquele tipo que começa a Bíblia pelo Apocalipse.
Prefere usar canetas com tampas – sem a bunda comida/roída de preferência – (desculpe o termo, Word, mas não existe um eufemismo para “bunda” tão objetivo quanto ele mesmo. Traçados vermelhos sob a palavra não vão me intimidar) porque as sem tampa têm aquela aparência intrigantemente e indiscutivelmente mais precária que as outras.
Gosta de ler, de escrever, de recortar. Recortar só por recortar. Fotos de gentes legais e desconhecidas das revistas. Depois os usa como marca-livro.
Irrita muito, principalmente por seu traço característico: Achar que está sempre certa. É com relutância que engole as opiniões dos outros. E se chega mesmo a engoli-las, mais da metade nem é aceita de todo.
A raiva que provoca pode fazer com que o indivíduo alvo de seu irascível gênio beire a histeria sempre quando ela diz, de um modo quase aloprado: “Ei! Eu mando.” E em seguida você ri. Porque é inevitável.
Pode passar horas sob o sol. Tem dias que, de fato, passa. Sentada numa cadeira branca de plástico Tramontina debaixo de um sol escaldante de meio-dia. E se você, em sua humilde preocupação, tiver a ousadia de mandar que ela saia dali, vai obter como resposta algo do tipo: “Não. Tô com frio”.
Isso seria até compreensível se aqui pelo menos fizesse algum tipo de frio... Mas não faz.
Vai ver, é um desses frios internos, que só entende quem sente, desses que se sente na alma... E por isso esses alguéns gostam tanto de tostar.
Tem um senso de humor razoável, e, de vez em quando, umas tiradas até boas, que assariam gelo. O que de fato seria interessante ao ponto de ser listado como item (praticamente o único) da lista de qualidades. Mas o problema é que ela tem um mau-humor bruto, que sobrepuja qualquer tímida veia cômica que ela por acaso possui.
Tudo isso fica mais complicado a cada parágrafo. Imagine encarar um texto desses ao vivo.
E sabe o que dizem sobre as pessoas que gostam de escrever? Elas não nasceram para ser lidas. Você pode, sim, tentar – e algumas vezes até conseguir – ler o que elas escrevem. Mas ler o que elas são, o que são por inteiro... Bem, são outros quinhentos.
Isso é latente. Gente assim. Não há qualquer definição. Não porque sejam imagens forjadas, imprecisas ou seres demasiado escorregadios. Mas é que, simplesmente, nenhum escrevedor tem tradução. Principalmente os que deixam tudo pelas metades. E ela é desse tipo de gente. Do tipo que escreve 100% e não conclui 3.

CONTO - Aqueles Cachos Azuis...

Meu primeiro amor foi uma prostituta. Ela era linda.
Havia um banco na esquina da minha casa, um banco amarelo de madeira, que repousava sob a sombra tranquila de uma árvore a qual eu nunca descobri o nome. Em algumas tardes, o vento passava por ali, nadava em volta, e agitava as folhinhas tão lentamente, que era como se eu pudesse parar o tempo... Como se tudo estivesse suspenso... Como se o céu assobiasse um dramazinho tranquilo...
Passei anos da minha infância observando aquele banco. Pintado primeiramente de vermelho-sangue, logo em seguida daquele tom forte e vitelino, a tinta começava então a descascar, e com o tempo as lascas de madeira foram sendo arrancadas. Por nádegas e nádegas que se sentavam ali tarde após tarde, bem debaixo da minha janela...
E do alto eu observava tal esquina. O vidro me protegia do mundo lá fora, eu tinha tanto medo, era um mundo tão grande, e acho que nunca cresci. A culpa foi do vidro. Ou será que foi minha? Prefiro não pensar mais nisso hoje. Tantas coisas ficaram para trás...
Voltemos àquelas tardes lindas e vazias. Antigamente, eu já era medroso. Tão medroso e assustado quanto sou hoje. Mas a diferença é que, antes, eu ainda me atrevia a arriscar. Uma vez. Eu queria realizar todos os meus sonhos mais pueris num dia só, num único dia, num gole só, numa só machadada... Pobre de mim! Achava que podia ser feliz simplesmente sentando num banco velho de esquina.
E assim foi. Numa tarde, recebi minha permissão, e enfim pude descer... Fui ver o pedaço de mundo lá fora. E eu mesmo achava que tinha vivido toda a minha vida em função daquele instante de emoção e fuga... Que tolice mais doce!
Foi numa tarde razoavelmente quente. Já era adolescente. Resolvi descer as escadas do prédio, e dessa vez, ao invés de apenas olhar de cima, sentar minhas próprias nádegas no banco de praça que povoara todos os quadros da minha infância...
Foi simples. Desci.
Eu estava atravessando a rua quando reparei na noite que já se aproximava, o cheiro de rio vindo de sei lá onde, e as promessas escritas em cada pedaço de calçada. Sentei no banco e esperei minha vida começar a acontecer. Demorou uns instantes... E nada. Será que era só isso? Pela primeira vez eu queria desvendar o mundo, começando pela esquina, e quando enfim enfrentava o magnânimo banco amarelo, nada me acontecia. Era mesmo só aquilo? Resolvi esperar.
Eu já estava sentado havia mais ou menos duas horas, tão estoicamente - disposição essa que hoje me falta -, quando, cruzando a rua no outro canto, ela apareceu.
Puxa, era linda. Tão linda que me fez sentir falta de ar. Eu ainda não sabia que se apaixonar era uma tremenda besteira. E muito menos sabia que podia haver gente tão bonita quanto aquela mulher... Enfim. Enfim. Sim, livre. Senti-me livre.
De fato, eu nunca tinha admirado de verdade uma mulher, nunca tinha reconhecido no outro sexo aquele elemento chave que faz você querer lamber seu próprio cabelo, ajeitar as costas, meter as mãos nos bolsos, lutar para não corar.
Bem, eu morei toda a vida com meu pai, era órfão de mãe, e o meu velho, apesar de professor, nunca havia dito qualquer coisa sobre aquela pressão sinistra que começava a formigar no baixo-ventre. Meu pai foi tão medroso quanto eu... Sorte minha não ter perpetuado nossa espécie.
Mas eu prefiro aquela tarde. Não quero refletir sobre o que sou, ou o que me tornei. Quero é viver e reviver esse momento já longínquo, lentamente, eternamente, porque só ali fui feliz, tão feliz, a ponto de estourar o peito! E é por isso que o desnudo tão descaradamente agora. Temo contar tudo. Mas sinto que é necessário, antes que a lembrança se apague, antes que esses meus dias cinzentos se tornem tão pretos que eu não possa mais enxergar nada...
Vá lá, eu estava sentado no banco, e ela apareceu, atravessando a rua. Seus cabelos eram tão negros, tão negros, que sob a luz morna daquela tarde, eles pareciam refulgir um brilho intenso e quase azul, cor de piche, de asfalto, cor de corvo. Cabelos tão lindos e longos e cacheados e densos que eu me perguntei como um homem poderia viver tanto tempo sem se enroscar naqueles fios... Sem conhecer aquela sensação que eu experimentava agora.
Ela ainda não me via. Veio se aproximando de mim, tranquila, aqueles quadris que se mexiam redondamente, um rosto oval descortinado, que me fazia pensar em sonhos... Eu não tinha consciência ainda, naquele tempo, que em minha cara se estampava uma expressão totalmente abobalhada. Eu estava apaixonado. Apaixonado por aquela cabeleira ambulante de cachos preto-azuis.
Ela aproximou-se mais, veio andando. Então nossos olhos se encontraram. Eu estava muito nervoso. Limpei as mãos suadas no jeans velho. Algo aconteceu, ela percebeu, houve aquele momento tácito e agudo em que dois corpos se encontram se entendem e se falam sem palavras. Ela sorriu. Sorriu para mim? Meu Senhor, ela sorrira para mim! E então veio vindo... Veio vindo... E eu me afogando naqueles dois poços escuros que eram seus olhos... Lembro daquilo tão bem, da sensação de me engolfar, que agora até me arrepio. E são meras lembranças, veja só! E foi tão bom! Eu não tive medo. Pelo menos não muito. Quando ela chegou suficientemente perto para roçar os joelhos nos meus, ela de pé e eu sentado, de alguma forma intuí que ela faria por mim o desconhecido.
- São 50 paus - palavras vulgares numa voz inumanamente meiga.
Traguei saliva.
- O... O quê?
- Cinquenta. O programa.
Ela estava falando grego.
Eu era inócuo o suficiente para não compreender o motivo pelo qual uma mulher tão linda desejaria, precisaria – ou julgaria precisar –, vender a si própria.
Mas, de algum modo, saquei que estávamos falando de coisas proibidas, liberdades não professáveis. Perfeito. Era o que eu buscava, não? Um beijo por uma nota. Tão tentador...
- Eu não tenho nada - respondi gaguejante e ridiculamente indefeso.
Ela sorriu. E daí até o próximo ato eu não consigo lembrar nada, ou dizer como foi que paramos dentro de um quarto à meia luz cor-de-rosa num motel.
Ela usava uma blusinha cortada com a cara estampada do Kurt Cobain, mangas que deviam estar ali em algum lugar, mas não estavam. Umbigo à mostra. E somente eu arrepiado? Que momento mais louco é esse, quando um garoto de dezessete anos entende que uma mulher é muito mais que braços e cotovelos. É umbigos e seios também.
Eu respirava assustado. O ar quente dentro daquele quarto era sufocante, e já derrapara a noite lá fora.
No cubículo, o abajur estava envolto num lenço que tingia toda a habitação, a chuva caía e escorregava pelas janelas como as preces surdas que o meu sangue grunhia, explodindo em mil pedacinhos de glória dentro do meu coração.
Procurei a vida inteira, anos depois, por essa sensação. Nunca mais se repetiu... Ah, a nossa vida... Que foi tão linda e não volta nunca.
Ela murmurou algumas palavras. Mandou-me relaxar. Eu fingi que obedecia. Com um dedo de unha longa, pintada de rosa no mesmo tom em que mergulhava o quarto, ela me empurrou de leve em direção à cama. Uma cama redonda, coisa que eu nunca vira. Caí sem ruído contra as almofadas, pedaços cortados em todos os formatos possíveis.
O motel era barato, qualquer coisa classificada como "beira de rua". Havia um cheiro forte de naftalina e mofo nos lençóis, e conforme a chuva aumentava e o vento rugia loucamente lá fora, o vidro da janela tremia e debatia-se, gelado como meus dedos dos pés.
Ela agachou-se perto de mim. Eu observava tudo. Tirou-me os tênis, as meias. Deixou-me sem camisa. Lambeu meu pescoço. Riu um riso alto, gritou um grito baixo, coisas de mulher, sempre mulher... E aquela voz me mandava respirar e ser corajoso. Prometia-me o mundo e eu acreditei.
Foi a primeira e única vez que provei um bocadinho de amor, por mais torto que fosse. Afinal, ela aceitara dar-se a mim sem que eu oferecesse nada em troca. Aquilo devia significar alguma coisa... Devia... Talvez... Talvez. Um talvez de menino.
Uma música. Ao fundo, o jazz. Eu ainda não sabia que aquilo era jazz, mas com o tempo descobri. O ruído macio vinha de um aparelho sobre o criado-mudo, e ela havia engendrado toda essa sedução sem que eu me desse conta. Meu coração rugia. O tempo galopava com uma navalha na mão, deixando muito claro que momentos assim não duravam para sempre. Mas eu queria. Quem sabe?...
Ninguém nunca sabe... Que vai viver um momento inesquecível enquanto o está vivendo.
Aproximou-se de mim outra vez. Seus olhos, fixos nos meus. Ela tinha um corpo em formato de laço. Os olhos, duas bolas de fogo negro. Contra a luz difusa e fraquinha do quarto, seus cachos enroscados pela cintura brilhavam lugubremente, como se naquelas ondas se ocultassem segredos marinhos. Ela cheirava a um cheiro gostoso. Mais tarde descobri que nem todas seriam assim. Tinha uns lábios do tamanho de um chumaço de algodão, e eu suspeitava que fossem macios também. Ela sorria sempre. Tirou a camiseta de banda, essa que fora estilizada até reduzir-se a um quase retalho. Uma chama propagou-se dentro de mim. Senti meus braços e pernas amolecerem, meu abdômen virou chumbo, minha cabeça, fumaça. O chão inteiro sumiu, não havia mais teto. Estávamos na chuva, no vácuo, no pôr-do-sol, em qualquer lugar. Mas havia uns brilhozinhos de estrelas vagando ao redor dos meus olhos, e eu tinha certeza de que em breve eu explodiria junto àquele céu.
Sutiã. Pela primeira vez deparei-me com um. Naquela época, não era comum que mulheres quase nuas aparecessem, na vida real ou na TV, então para mim era tudo novidade. Ela usava um sutiã de renda, uns peitos não muito grandes, gigantes anões, eu diria. E falou para mim:
- Vamos voar? - riu. – Que tal?
Só pude concordar, boca meio aberta, dentes batendo uns nos outros, olhos vidrados.
Naquela noite eu voei.
Toquei, sim, estrelas, e mais, muito mais. Desvendei todos os mistérios, matei todos os monstros, estraçalhei todas as dúvidas; encontrei um lugar em mim onde havia muito mais do que a obviedade do medo gelado que me fora legado.
Ela me olhou nos olhos mais uma vez, uma última vez, antes de fechá-los, e pairar de leve acima do meu corpo com aquela pele quente e dourada.
Ela tirou a calça jeans.
Uma única noite.
E eu nunca mais fui tão feliz...

CONTO - Relato de um domingo

De fato, quando acordei e debrucei-me sobre aquele novo dia que nascia, eu não planejava matar minha filha. Isso não é algo que se planeje, que se almeje, ou espere... Você simplesmente acha que seus filhos viverão para sempre, não é? Mas esqueçam este prelúdio inútil. Isso tudo são apenas ruminações de um quase velho, deixemos de lado. Meu principal - na verdade único - objetivo é contar como se deram os fatos naquele dia.
Domingo. Acordei sem nenhuma disposição para sair de casa, mas minha esposa insistiu muito... E eu sempre fui um fraco, admito. Tamanha foi sua insistência, que quando me dei conta, eu já estava lá, sob o chuveiro, deixando a água escorrer e limpar o suor da noite, enquanto começavam a despertar lentamente as engrenagens do meu cérebro. Água fria. O banheiro, cheio de vapores. O cheiro dela ainda estava ali... Minha esposa. Na verdade, não a primeira, a segunda. Com quem tive filhos gêmeos.
Antes de prosseguir com a história, peço permissão para abrir um parêntese e escavacar o passado... Não, não reclamem. Relembrar rapidamente o passado agora é fundamental, porque só assim vocês entenderão os motivos pelos quais casei de novo, com esta mulher que acabo de mencionar, a que deixou vapores no banheiro e suor de sexo selvagem em meu corpo.
Bem, como disse, eu já fora casado antes, um casamento alegre e justo. Tive até uma filha, uma filha linda, com minha primeira mulher. A filha que matei... Quer dizer, que terminei de matar. Mas vamos com calma. Primeiro, deixem que eu me atenha a esse casamento original.
Vocês devem se perguntar neste momento o porquê de eu ter me separado de minha primeira esposa se era tão feliz. Só o que posso - o que consigo dizer - é que isso constitui uma questão delicada: Eu não sei bem como explicar o que me levou a rechaçá-la... Na realidade, eu não a afastei, ela é que se levantou e saiu, assim, sem mais nem menos, da minha vida, levando minha primeira filha. Analisando a situação hoje, acho que ao cabo da situação, só o que fiz foi dar-lhe o troco: Tirei a filha dela também, assim como ela fizera comigo em nossa separação.
Mas bem, que fôlego! Estou precipitando-me. Espere... Estou tentando explicar porque me separei da minha primeira esposa.
Confesso que antes, durante, e depois do casamento, eu ainda, e sempre, gostei dela. Mas ela achou que não dávamos mais certo, e eu achei que ela achava isso porque talvez fosse certinha demais... Calma demais... Quadrada demais... Pouco passional. Eu não.
Meu maior defeito? Sou ciumento. Agressivo. Isto é algo que tenho em comum com minha atual esposa. Então aquela nossa separação aconteceu por isso... Porque não nos conhecíamos mais. Não nos amávamos mais com o mesmo fervor. Talvez amar nem seja o verbo certo... Quem sabe, o verbo certo seja "querer". Eu ainda a queria, mas ela não.
Veio então minha segunda mulher. Eu já a conhecia desde antes, circulávamos entre os mesmos grupos de amigos, ela deixava ocasionais "recadinhos" em meu trabalho, em meus e-mails, os quais mais me pareciam grandes flertes. Então, um dia, eu aceitei. E correspondi. E, quando me dei conta, estava casado. Pela segunda vez.
Mas como disse, com o tempo, algo se desgastou... Acho que foi o encanto. Porque, passado o encanto, eu e ela descobrimo-nos muito parecidos. E é lei na física dos amantes que os semelhantes se repelem. Ou ao menos se machucam mutuamente. E foi o que aconteceu: Por sermos tão iguais, éramos tão divergentes em tudo o que dizíamos; em tudo o que gritávamos, em todos os lances que trocávamos. Ela, eu, nós éramos ciumentos. Ao extremo.
Ela nutria ciúmes pela filha que eu tanto amava e que tive primeiro, com a esposa original, mesmo que com ela eu tivesse gerado dois de uma vez só!
Ela tinha ciúme da minha bela amada garota porque dizia que ela parecia-se muito com a mãe... O que era verdade. E, em terceiro lugar, ela sentia ciúme da garota, a minha primogênita, porque era a constante lembrança de que antes de ela, existira outra mulher.
A qual secretamente - agora não mais - eu ainda queria. E, ah, esqueci de mencionar: Seu último ciúme era porque eu ainda tinha ciúme da primeira.
Digam então que eu não presto. Podem dizer. Eu não me importo. Qual de vocês presta? Eu não queria ter matado minha filha... Não.
Foi naquele domingo.
Aquele ciúme que minha segunda mulher tanto sentia aos poucos se converteu num ódio mudo, latente... Mas presente. E ela focou a emoção total e completamente na direção de minha filhinha, o meu tesouro, a minha bela criança. E foi nesse domingo que todo o ódio explodiu. Calma, vou chegar lá.
Depois que saí do banho, nós apressamo-nos, arrumamo-nos - eu, ela, e meus três filhos -, e saímos para passear de carro. Afinal, era domingo. Prometia ser um dia lindo, um dia bom... Mas minha esposa já estava um pouco irritada. Ela tinha perdido a paciência porque eu demorara demais no banheiro, porque não a ajudei a trocar fralda dos gêmeos, porque eu insistia em telefonar para minha primeira esposa toda manhã... e porque eu levava apenas minha filha mais velha no colo; os gêmeos eram por conta dela. Mas o que ela queria? Eu não tinha mais de dois braços para carregar todas aquelas sacolas e ainda três crianças!
Foi assim que começara o dia. Estressante.
Então saímos. Passeamos... Tudo mais ou menos bem. Comemos fora, brincamos no parque, trocamos alguns palavrões porque ela insistia em gritar comigo na frente dos outros, e nossas brigas sempre girando em torno da minha ex-esposa, e do meu dinheiro, porque, afinal, eu a sustentava agora, e com isso ela se sentia inútil, uma reles empregada.
Fiz de tudo para evitar mais discussões pelo resto do dia... Mas quando entramos outra vez no carro, com nossos gêmeos dormindo e minha filha acordada, a briga iminente e que eu evitara tanto eclodiu.
Minha filha, do banco de trás, entre as cadeirinhas dos bebês, ouviu tudo. Começamos a nos agredir, eu e minha esposa.
Ela então pediu lá de trás que eu parasse de gritar, assim como pediu à madrasta que parasse de dizer aquelas palavras feias... Foi quando aconteceu. Irritada, minha mulher acertou um soco no rosto de minha filha.
O horror começou.
Eu estava mudo e estupefato, contundido, queimando. Um buraco no peito, a falta de ar. Era a minha garotinha... Sendo surrada... A quem eu devia socorrer? Minha esposa raivosa ou à menina ferida?
Não socorri nenhuma das duas. Fiquei estático, e quase fechei os olhos. Mas acabei vendo tudo.
Ela sufocou a menina, e depois sacudiu, numa espécie de estrangulamento. A unha afiada arranhara a testa da minha garotinha. O soco tinha sido forte. Ficaria roxo. Ela então bateu no rosto da criança mais duas vezes, dois tapas, o barulho dos dedos contra a bochecha cor-de-rosa. E a menina desmaiou.
Minha esposa, ao se dar conta do que acabara de fazer, ficou muda. E aí rebentaram as lágrimas.
Um silêncio mortal.
Engoli em seco. Endireite-me no banco. Liguei o motor.
Dirigi como louco de volta para casa. Não, nada de hospitais. Se fôssemos até lá, o que poderiam pensar de nós? Eu tinha uma imagem a manter! Era um homem sério... Sério...
Quando chegamos à garagem do alto prédio, girei a chave, o carro parou; eu e ela ficamos ali, no escuro da garagem, pensando, apavorados. Por que minha filha não estava mais respirando? Por que estava sangrando tanto? Se por acaso ela estivesse viva, agora eu sabia, sentia nas entranhas, ela logo morreria... Não levaria muito tempo... Então o que fiz?
Enquanto minha esposa soluçava desesperada pelo que cometera, prestes a inaugurar em si uma crise de histeria, eu a sacudi até que se calasse. Mandei que respirasse. Mandei que me ajudasse. Eu tinha um plano.
Ela matara minha filha, mas... Não poderia levar a culpa. Não. Aquilo iria manchar, levando nós dois juntos até a mais profunda lama. Era melhor forjar uma explicação. Depois eu tentaria não arcar com as consequências.
Decidido, ainda com as lágrimas a escorrerem por meu rosto, tive de pensar rápido, e fiz. Tirei minha filha do carro, o corpinho estava quente, sangrando, molenga. Assustador.
Ela gemeu. Ainda estava viva!
Mas eu sabia que restava pouco tempo. Aquele suspiro cansado... Aquela falta de ar... Já era sim a morte nela. Fechei os olhos e subi até o apartamento pelas escadas de emergência, enquanto minha esposa trazia os gêmeos profundamente adormecidos pelo elevador.
Tudo não levou mais de treze minutos. Quando chegamos ao apartamento, ainda em estado de total inconsciência sobre o que acontecia realmente, deixei minha filha inerte sobre a cama, em seu quarto de paredes brilhantes. Então, enquanto minha esposa tentava não gritar desesperada, eu encontrei uma tesoura grande e prateada, um pouco enferrujada nas articulações, dentro da gaveta do banheiro.
Fui até a janela, no quarto. Com cuidado, para não pisar no corpinho imóvel sobre a cama, subi no colchão, pelas beiradas, quase escorreguei sobre meus chinelos, debrucei-me sobre a tela de proteção com sofreguidão, mas com a precisão de um maníaco. E cortei. Um círculo imperfeito, um buraco na tela da janela.
Lancei a tesoura na direção de minha esposa, que agora me observava da porta do quarto. Acabara de deixar os gêmeos nos berços. Ela queria ver o que eu estava fazendo. Estava me livrando da burrada que ela arrumara!
Ela agarrou a tesoura, saiu para guardá-la em algum canto. Ela também não queria ver o que eu faria em seguida... Olhei então para o chão, e notei as gotas de sangue, feito um caminho de migalhas de pão, como na história de João e Maria. Ia desde a porta do apartamento até o quarto, e aos pés cama, onde eu estava agora.
Fechei os olhos e voltei-me para a janela. Agachei-me, peguei minha filha no colo, pelo que seria a última vez, e de alguma forma eu sabia. Então, o próximo passo foi... Jogá-la janela a fora.
Não a vi caindo. Virei o rosto. Nojo de mim, nojo de tudo, nojo da vida, nojo daquilo que eu me tornara. Mas estava feito. Não a vi estendida no gramado lá embaixo. Não quis olhar.
É claro que eu contaria uma outra história quando a polícia, ou os bombeiros, ou o resgate chegassem, mas até então eu teria tempo para pensar em algo plausível.
Era como se eu estivesse brincando num jogo de tabuleiro sem fim, e eu era a caça.
Mal podia imaginar o que só descobri agora... Que seria caçado eternamente... Pela minha consciência.
Desci da cama. Respirei fundo. Esfreguei as mãos no rosto. Minha esposa passional, bem articulada e briguenta estava pela primeira vez muda, na sala, sentada e encolhida. Os dedos tremendo. Ela já se dera conta do que fora feito? Do que fez? Do que fizéramos? Eu não podia dizer. Porque nunca entendi essa mulher...
Durante todo o tempo, enquanto fazia o trabalho sujo, pensei, é claro, em livrar minha pele, mas pensei também na primeira. Minha primeira esposa.
O que ela pensaria? A questão era ela. Sempre fora ela. Agora eu sabia que meu coração era um poço fundo e escuro, de paredes pegajosas, por onde escorria a eterna bile. Meu coração não tinha alma, era um coração oco. Passional, irracional, mas ao mesmo tempo oco. E agora, eu acabara de descobrir também, um coração capaz de criar um álibi, justificar um crime... Coração contraditório. Ora, de que importava a droga de um coração?! Eu tinha construído uma vida baseado no engano de ter-me casado de novo. E agora essa vida desabava, caía por terra.
Melhor. Eu não aguentava mais. Estava saturado. Fim.
Fui até a sala, perto dela, no sofá, e liguei para o meu pai.
Assim terminou aquele domingo, que foi o mais surreal de todos... E a vida real, brutal, grotesca, começou.