domingo, 27 de abril de 2014

IMENSOS PEQUENOS PRAZERES DA VIDA

lembrar um precioso esquecimento, neosaldina depois de uma estafante batalha dentro do crânio, frappé, drummond, o cabelo de alicia silverstone nos anos 90, o estilo e as metáforas de laurent brancowitz, amar um homem mais velho, poder conversar sobre qualquer coisa com um grande amigo, pessoas que prestam atenção ao que você diz, aragorn, músicas maravilhosas descobertas ao acaso, cafuné no cabelo, reler livros já lidos mil vezes, não precisar falar ao telefone, um brigadeiro que forma aquela casquinha áspera e crocante sem querer, as trilhas sonoras de sofia coppola, as ideias insondáveis de david lynch, autossarcasmo, alfajor, nhoque da vovó, o esmalte bikini so teeny que eu nunca vou ter, botas de couro masculinas de cano curto, lana del rey, o pop mais ou menos marginal, edward hopper, ed ruscha, michael fassbender, alguém matar pra você a barata, ouvir los hermanos mesmo depois de tanto tempo, aprender a letra da sua mais nova canção favorita, listas de filmes, listas de livros, listas, charlotte brontë e suas circunstâncias hoje revividas em quem não pode doer, pessoas que não cobram, fotografar randomicamente e ver dar certo, dizer "belly", dizer "frolic", dizer "fromage", dizer "huge", dizer "mouth", dizer "cornija", artistas falsamente despretensiosos que fazem grandes coisas, gente que não arrota, refrigerante sem gás, colagem, cheiro de mãe, abraço de irmã, sentir a prosa de gabriel garcía márquez entranhada na pele, ser elogiado por algo que não sabia que era ou que fez, não ter pelos, ficar horas debaixo do sol sem pretextos nem julgamentos, gente que gosta de sol tanto quanto você (so far, apenas luciana, personagem de loyola), "o beijo não vem da boca", amor de vô e vó, mães que ficam, saber cantar e ter voz linda, saber compor e saber tocar, lutar produtivamente contra a procrastinação e - maior ainda - contra a postergação, uma aula de bruno sérvulo, uma aula de ulisses infante, cápsulas do tempo, pequeninos legados mesmo imateriais (de preferência materias, como uma coleção de discos de jazz), discos de jazz, discos em geral, aprender a apreciar músicas sem letra, primas-irmãs, primos-irmãos, o canto do carão à beira da lagoa, o céu de fim de tarde de macapá, o cheiro de chuva subindo da terra de madrugada, óculos de aro de tartaruga, anos 80 mitigados pela maquiagem do tempo, (algumas) roupas dos anos 90, as primeiras três temporadas de friends, mônica e chandler, banana (não dá trabalho e dá alegria, segundo a mamãe), a primeira leitura mágica da sua vida, gente que sabe de vírgulas mas não tem medo de ousar, feriado às segundas-feiras, blush, gente que se apaixona pelas coisas que você indica, gente que lê seus textos porque gosta, ter conversas sinceras com Deus, descobrir na prática o que é ser "assertivo", "i don't think this place is half as nice as tiffany's", "one time too many", "purple rain", o molho do big tasty, escrever sem pressão, mulheres que assumem a juba encaracolada ou disforme, saber o significado das palavras em suas gradações, batom matte (quando o lábio não resseca), uma simples e franca afeição por kitkat, abajures, ler de madrugada, subir num cajueiro, a essência do perfume paris na vovó, meia-calça preta, mãos, travesseiros gordos, arrepiar-se num frio interno enquanto se está sob o sol, lápis de cor, jogar torto, as cartas de machado de assis, tatuagens inusitadas, tom de voz manso, maría valverde, a elegância e fotogenia de jane birkin, trilogias de nora roberts, jamais entender mas sentir seus autores favoritos, gente que descaradamente prefere literatura à linguística, samuel slabbinck, cabelos coloridos, tons pastéis, cronistas brasileiros, memórias súbitas da infância, mark-darcy-floppy-hair de macfadyen, morrissey, canetas de ponta fina, anéis que cabem perfeitamente, caderno novo, deitar-se no chão, escada de mármore branco da casa da vovó, suco de maracujá, frango frito da mamãe, caixas bonitas, xícaras, pão, camarão, comer devagarzinho, conseguir dormir mesmo sem estar realmente com sono
 [em contínua continuação]
        

sábado, 26 de abril de 2014

NA PRIMEIRA MANHÃ

Na primeira manhã que te perdi
Acordei mais cansado que sozinho
Como um conde falando aos passarinhos
Como uma bumba-meu-boi sem capitão
E gemi como geme o arvoredo
Como a brisa descendo das colinas
Como quem perde o prumo e desatina
Como um boi no meio da multidão
Na segunda manhã que te perdi
Era tarde demais pra ser sozinho
Cruzei ruas, estradas e caminhos
Como um carro correndo em contramão
Pelo canto da boca num sussurro
Fiz um canto demente, absurdo
O lamento noturno dos viúvos
Como um gato gemendo no porão
Solidão

alceu valença

DRUMMOND

A castidade com que abria as coxas
e reluzia a sua flora brava.
Na mansuetude das ovelhas mochas,
e tão estreita, como se alargava.
Ah, coito, coito, morte de tão vida,
sepultura na grama, sem dizeres.
Em minha ardente substância esvaída,
eu não era ninguém e era mil seres
em mim ressuscitados. Era Adão,
primeiro gesto nu ante a primeira
negritude de corpo feminino.
Roupa e tempo jaziam pelo chão.
E nem restava mais o mundo, à beira
dessa moita orvalhada, nem destino.

domingo, 20 de abril de 2014

FROLIC

A carne acabou ficando muito salgada e por isso imprestável, a solução foi jantar a sobremesa. Um prato assim enorme de brigadeiro e dois adultos ridiculamente rendidos a um prazer tão adolescente. E há idade para isso?
Duas colheres duelavam no campo de batalha, indo pelas beiradas, que era onde estavam as melhores partes, as casquinhas queimadas. Estranho que a disputa não fosse pelo meio, e sim pelas bordas. É que nós dois gostávamos de tudo quanto fosse marginal, porque terminava mais gostoso, crescendo à mercê do capricho, da rebeldia, da liberdade de não ser o centro da atenção.
Na época dessa janta, se fazia amor ouvindo Phoenix, e isso era uma coisa para lá de boa. Interromper pra ir trocar o CD. Importante era durar. Era a experiência toda, não o ponto final o ponto mais importante. Bem, talvez fosse e estou mentindo só para deixar bonito e impraticável.
Mas aí então no final depois de tudo consumado e a última faixa ter silenciado ainda ficavam os ecos das canções na nossa cabeça, porque foram experimentadas à exaustão e até o fim da margem do delírio, que é a doce queda. Daí depois a gente assim cantarolava os refrões trocados, ia fundindo os primeiros trechos e depois imitava com a boca aos risos o solinho havaiano de Branco em Lasso. O brilho frólico no rosto na manhã seguinte se lia e já se sabia: fez ouvindo Phoenix.
Mas nas jantas daquela época também tinha outras coisas...
Agora não lembro.
Talvez a gente conversasse bastante e profundamente, mas no final eram tudo besteiras.
Houve aquele fim de semana em que eu não soube mais o que dizer e de repente ficou assim estranho, mas um estranho bom. Era provavelmente o passo à intimidade. Vai-se descuidando das palavras, os silêncios ficam mais significativos, silêncios, só te tocar, e sorrir, a não necessidade de se conhecer. Para quê? Já se conhece. Até o cravo já se tirou.
Toda vez que eu olhava para aquele pontinho preto na margem inalcançável da bochecha, mais assim pra perto da orelha, dava uma vontade danada de enfiar as duas unhas e espremer sem dó! Não. Ainda não havia jeito: não éramos ainda tão ligados. Ainda do clube da porta do banheiro fechada e a luz do quarto apagada, mas o abajur, porque mostra encobrindo. Até que um dia só fiz me aproximar e fiz. Saiu a cobrinha branca e ele foi todo nojo e caretas e eu naquele prazer da asquerosa missão cumprida sem qualquer afetação. Depois nem lembramos, não restou vergonhas: deu certo e era já o império do silêncio íntimo.
Que mais? Amei tão ardorosamente que agora ainda lembro como foi difícil separar os discos quando foi preciso se separar. Sem brigas ou rancores, era só mais um passo na vida e eu odiei a vida e me embebedei loucamente sem entender que se não quisesse era só não ir, não viajar, era ficar, ou levar junto, que fosse. O clichê se mostrou verdadeiro. O clichê é cada vez menos clichê agora porque não há mais quem compre discos e CDs. Eu ainda tenho os meus e ele ainda tem os deles e na hora de a gente dividir a divisão foi tão certa que eu me pego às vezes pensando que deveria ter deixado lá meu álbum favorito só para ter motivos de rancor. Mas não tenho. Às vezes quero voltar, jantar miojo e brigadeiro. Cruzar as quatro pernas, meias no falso frio da noite, conversar na penumbra da sala tomando vinho barato porque sim, é gostoso. Mas isso não se faz com uma criatura aqui e a outra criatura lá no apartamentozinho tão charmoso porque então ainda era marginal ter um apartamento charmoso num bairro deplorável e a vida foi tão boa e simples que agora eu me pergunto qual a necessidade de mudar os móveis de lugar e tomar decisões assim na vida que estava tão boa, e foi uma vida boa sem deixar de ser boa nunca até o momento em que, espera!, vamos parar. Doeu quando tirou a barba e foi tipo isso mil vezes mais e regado a uísque contrabandeado do senhorio do novo prédio nesse novo país estranho e desconfortável.

PROMESSA À SEMENTE

Dar-te-ei os bocadinhos de dor e sofrimento necessários para te fazer irresistivelmente adorável.
[Li em algum lugar um algo assim. Reelaborei. O plágio é sincero: a ideia é doce.]