quarta-feira, 14 de março de 2012

CARTA ANÔNIMA

Cheguei em casa estourado, cansado, cansado de tanto pensar, tentar ser um cara legal. Cansado de o pessoal pisar em todo mundo no escritório, e mais ainda cansado de forçar otimismo e acreditar que tudo vai melhorar, para mim e para os outros capachos lá do serviço.
A caminho de casa, gritei, xinguei, urrei. Voltei assim caminhando feito um cão atropelado, sangrando, já nas últimas. Humilhado pelo assistente do sub-chefe, o que me resta? Isto significava não ter qualquer chance de crescer um milímetro sequer. Nunca.
Desiludi-me com a vida, de modo geral. Aquela desilusão que alguma hora nos abate. Entrei logo batendo a porta, tirei a gravata como se escapulisse da forca, joguei-me na poltrona surrada da sala. Pensei seriamente em pedir demissão, quebrar a cabeça na parede, eu sei lá. Pensei em fugir de casa, ir morar dentro do meu carro quebrado, e sobreviver da renda que daria se eu vendesse minha coleção de HQs.
"Um homem de trinta anos não pode continuar fazendo coisas de garoto"... E, é claro, eu deixaria minha esposa.
Um derrotado. Um fracasso total. Um homem sem perspectivas, sem riqueza, sem encanto.
Eu estava decidindo a melhor forma de me vingar do sistema, ou de morrer, quando ela apareceu na sala e grunhiu:
"Chegou uma carta aí pra você".
Jogou alguma coisa no meu colo, e quando abri os olhos já evaporara outra vez.
Contas! Contas a pagar!
Espera... Não.
"Hum..."
Fiquei curioso. Uma carta mesmo? O que poderia...?
No verso do envelope, no campo "destinatário", estava escrito: "Ao seu jeito manso".
O meu... O quê? Meu "jeito manso"?! Seria um código? Refrão de pagode? Engano?
Abri. Ninguém se identificava como remetente. Eu sabia, pelo menos, que não viera pelo correio. Alguém não muito longe de mim. Dediquei-me à boba alegria, de repente descoberta, de decifrar a missiva secreta.
Meu remetente anônimo começou:
"Nem tente. Não tente descobrir quem escreve a você. Será impossível, esforço inútil. Ademais, não importa. É só para dizer que você tem aí um tesouro para o qual talvez ainda nem tenha atentado, mas aí está... É esse seu jeito manso que me faz pensar que tudo ficará perfeitamente bem. Como você faz para convencer a todos de que as coisas podem realmente dar certo? Acredito que, se um dia você perder essa sua tranquilidade, o mundo também perderá de vez o próprio eixo.
Não quero que você pense que quem aqui escreve é alguma espécie de tresloucada. É apenas uma alma abatida, que um dia descobriu conforto no jeito manso de um broto tranquilo, de modos calmos e fala agradável. Esse sujeito era você. Agora sempre penso que tudo vai dar certo, porque as suas palavras naquele dia me convenceram de que seria assim. A minha vida (talvez eu esteja exagerando, mas pode ser verdade) mudou desde quando você, sem esforço nenhum, me fez entender que as coisas nunca estão muito ruins, mesmo quando assim parecem.
Agora esclareço: Eu devia isso a você. Devia esta carta em gratidão, porque até mesmo a mais singela gentileza entre desconhecidos pode gerar uma cadeia de bons acontecimentos que devem ser devidamente retribuídos. Assim eu retribuo. Pedindo a você que nunca deixe de ser a pessoa maravilhosa que você expõe, ainda que eu só tenha tido a chance de percebê-lo durante aquela curta interação no metrô... Espere! Estou falando demais. Você provavelmente não lembra. Lembra-se de quando me respondeu que horas eram, e sorriu? Não, acho que não. Mas se sim, saiba que acaba de ajuntar ainda muito mais pontos do que antes.
Enfim, meu caro desconhecido... Consegui descobrir o suficiente para chegar até aqui, ao seu endereço. E não prossigo, exceto para reforçar: Não deixe nunca de ser você. Não perca esse seu jeito manso, a voz segura e calma que falou comigo no metrô. Você parecia felicíssimo, mesmo que, conforme me disse, seu carro tivesse quebrado logo naquela manhã, tão importante. Não deixe de ser a pessoa divina que me pareceu, de coração tão leve e bom-humor imbatível, e que ainda me fez ter a irrepreensível vontade de possuir em mim essa mesma alma, esse mesmo espírito e a mesma mansidão que há em você. Não me puna por amá-lo secretamente, querido estranho, desde aquele dia... Você é um daqueles pequenos milagres".
E era tudo. Terminava aí. Abrupta e infinitamente bela. Uma letra idosa. Talvez cansada. Mas bela. Quem seria?... Eu não conseguia lembrar. Havia sido tão traumático aquele dia em que o carro quebrou e eu pegara o metrô, porque a promoção tão esperada não veio! Tudo desde então parecia vir desabando... E agora, esta carta... Esta carta escrita por... Eu não conseguia lembrar-me de jeito nenhum! Uma vaga e imprecisa ideia de que tivesse dito as horas a uma senhora grisalha e tristonha no metrô, mas não tive certeza.
Eu apenas... Apenas sorri. E o mundo voltou a ser o mesmo, o mesmo belo mundo que era belo demais para que eu pensasse em desistir.
Ah! A delícia de se descobrir especial...

JANELA D'ÁGUA

Estávamos eu e ela presos na casa, a noite fria, porque chovia muito. Eu não tinha certeza do que significava toda aquela escuridão, ou todo aquele nervosismo, mas eu sei que sentia.
Sentia milhares de coisas ao mesmo tempo, e o vento que entrava pela janela era bom. Me fazia recordar de coisas que eu ainda nem vivera, e me fazia ter vontade de ser grande só pra ter vontade de voltar a ser pequeno...
De algum modo pressenti que aquelas férias no sítio seriam únicas, e que aquele momento em especial, preso na casa, a casa fria, era tudo muito lindo, no futuro formaria um belo quadro na minha lembrança. Melhor ainda do que formava então.
Eu só vontade de estar ali, nenhum lugar mais. A janela aberta, a escuridão... O vento noturno soprava, e entrava, e a gente com medo de que aquela ventania toda apagasse as velas. Éramos todos movidos a lamparina e cera. Era bom.
Eu sentei-me no chão gélido, chão de pedra, bem em frente à janela. Fiquei olhando o céu do sítio, e as bordas da janela que se liquefaziam junto com a chuva, e escorriam para dentro e para fora.
Ela veio e se sentou ao meu lado. Ficamos namorando a noite. Aquela noite tão escura, e tão viva, e ardente. Fazia frio e nós, aquecidos.
Ela não ligara muito para mim durante todo aquele tempo... Julho passaria sem que nos olhássemos de frente, não fosse aquela linda noite, aquela líquida janela. E eu padeci, o muito tanto que é permitido a um menino banguela, ainda aberto e sem verniz, padeci de amores por ela.
Aquela noite... Aquela noite trouxe em suas asas de vento um punhado de novidades, promessas de futura nostalgia, de cheiro de sereno, de descoberta, aqueles, aquela, aquilo. Ela que se sentou ao meu lado, e olhou a chuva comigo. Trouxe consigo uma vela. A vela logo se apagou. Os adultos dormitavam nas cadeiras, ao redor. Nós nos amávamos. Amávamos com os olhos, e nos devorávamos em curiosidade... Tudo isso com o poder das pupilas dilatadas. Ela me olhava pela primeira vez.
A noite de chuva no sítio, que descortinou a nós dois um mundo novo. O mundo do menino que de repente, em meio à água transparente da tempestade noturna, se torna um universo de cores e coisas indizíveis...
E depois você entende por que vale a pena viver por uma só lembrança, uma lembrança sem malícia alguma. A lembrança é a esperança da repetição, esperança de que uma chuva como aquela, e uma amante de olhos, banguela que nem ela e também como eu então, voltem a habitar a retina - viva, presente -, não só a memória e as fugidias reminiscências do coração.


EMPANTIPATIA

Só quem já provou um verdadeiro desamor à primeira vista, pode ter noção do que vem a ser a empantipatia.
"Empantipatia" é, como bem suposto, a junção de antipatia com empatia. Configura-se "empantipatia" quando antipatia e empatia coexistem de maneira inconsciente e perfeitamente instável.
Essa mescla de emoções, que na realidade consiste num só sentimento, aparece normalmente quando um indivíduo se sente pessoal e profundamente perturbado com a existência de um outro determinado indivíduo. Aí está o desamor à primeira vista, também conhecido por "nojinho", e este desamor é sempre prenúncio à tal empantipatia.
Não passa de um amor não professado. Sabe-se lá por quais medos, projeções, anseios...
Mas voltemos.
O quadro de sutil desamor logo evolui e transforma-se em antipatia bruta, nojo mortal, asco sem limites e indefinível. Você não sabe muito bem por que despreza tanto a esse seu semelhante, mas sabe unicamente que a mera pronúncia do nome da pessoa já é capaz de despertar em você as maiores crises de ira e golfadas.
Mas o que você não sabe é que toda essa antipatia, no fundo da sua mente, adormecida no mais remoto recôndito do seu coração, na verdade é a pura e simples empatia.
De fato, essa sua antipatia quase irracional pode ser perfeitamente explicada: você não se dá com determinada pessoa porque enxerga nela você mesmo. E não consegue evitar desprezá-la, para não desprezar-se, porque ela reflete você de uma maneira irrevogável. Tanto os pontos positivos, quando os negativos. Ainda que sua antipatia insista em reconhecer somente estes últimos.
Desta forma, a empantipatia ocorre quando a discórdia que você nutre para com alguém encontra explicação no fato de que você se parece com o alvo do seu desprezo muito mais do que gostaria.
Afinal, é sempre aquela história... A linha tênue do amor e ódio... Neste caso, também quem prevalece é o amor. Ou melhor, a empatia.
E tudo se dá de maneira metódica e bem familiar (você provavelmente conhece o passo-a-passo, mas de outros contextos): Você nega, mesmo depois de muito tempo desprezando aquele em quem você se projeta; em seguida, vem a raiva; após isso, a tristeza; e, por fim, a aversão se transforma em confortável aceitação.
E tudo então deságua numa curiosa amizade... Já que, apesar de enxergar no outro o seu pior, não dá para resistir a ter como melhor amigo alguém com as mesmas melhores partes de você.



sexta-feira, 9 de março de 2012

RECADO

Neste dia da mulher, seja homem.
Diga a ela o que você sente. Mas diga com todas as letras.
Diga a ela que você se arrepende, que se arrepende muito de sua última burrada, e que provavelmente voltará a cometer outras, mas tudo sempre estará bem se ela estiver com você.
Neste dia da mulher, fale a verdade.
Admita que você realmente olhou para a bunda da vizinha - mas não é ao lado dessa que você quer estar para o resto da vida.
Dê a ela uma flor, apanhada com todo o carinho. Não precisa ser um buquê de rosas vermelhas, opulentas... Não. Basta ser uma florzinha miúda, dessas róseas, amarelinhas ou brancas, que aparecem pelo chão, por entre as frestas da calçada, e que resistiu a todas as intempéries para estar com ela.
Seja generoso, afável, descontraído.
Ser generoso - dar a ela aquele beijo de cinema com o qual ela sempre sonhou, e dedicar uma parte sincera da sua atenção às coisas que ela tem a dizer.
Ser afável - tratar os cabelos dela, as mãos dela, o pescoço dela, o coração dela..., enfim, ela toda, com ternura. Sem medo de parecer fraco. Não há homem de caráter mais forte do que aquele que demonstra seus sentimentos, sem nem precisar dizê-los.
Ser descontraído - não pegar no pé dela caso tenha exagerado na maquiagem, no salto alto ou na chapinha. E rir um pouco dessa preocupação tão febril com a aparência, deixando claro que, para você, ela é musa até de pijama e rímel borrado.
Seja homem. Mas não seja só hoje. Que hoje seja só o ponto de partida. E que amanhã, e amanhã, e depois..., você prossiga sendo o homem que essa mulher pediu a Deus.
Não duvide. Ela com certeza pediu.
Então apenas... Seja.