sábado, 30 de novembro de 2013

O HERÓI AMPUTADO

00:49. É mais um dia que começa em angústia. E de pensar que eu costumava apertar aquele cascãozinho de ferida no dorso do pé dele... Eu dormia, durante o tempo que estive em Macapá, no quarto deles. Cobri-los com o edredom, até o nariz. Fazer massagem quase toda noite. Não com óleo de andiroba, que fedia demais, mas com aquele gel geladinho. Eles adoravam. Eu sempre muito impaciente. Fazer massagem doía a minha mão. Mas eu fazia. E, na vez do vovô, lá ia eu, apertar as feridinhas dele. Ele gemia, brincalhão: "Aiai". Fazia careta. Eram uns cascões feios, muito grossos, amontoados de pele seca e morta. Feio especialmente o do peito do pé. Ali embaixo, havia um demônio.
Essa feridinha, descobriu-se, ocultava um buraco. O pé dele estava morto já. Não havia sangue, porque a circulação era problemática. E só foi desvendado o problema por causa de uma micose crônica na unha do dedão do pé, que nunca parava de dar pus. Tratávamos a bactéria em casa, ou seja lá o que fosse. Durante uns dois anos, ele com aquele dedão assim. Os cascões de ferida não preocupavam. Nem pensávamos nisso. Ele tinha as feridas há mais tempo, inclusive, que a unha purulenta. Nem atentávamos para o fato.
Então ele foi ao médico, internado com uma dor forte no pé, e descobriu-se a pele branca, debaixo de sua pele negra, morta, pálida, sem sangue. O médico fez uma raspagem para ver se o sangue não apareceria mesmo... Acabou que não apareceu. Era mais grave do que se pensava. Mas então, na manhã seguinte, meu avô acordou com o pé a jorrar sangue. Foi uma boa notícia. Havia esperança para o ferido. Foi mandado para casa depois de mais algumas semanas e começou a ser tratado com curativos de enfermeiros que iam até lá. Ele estava com um buraco no pé, através do qual era possível ver os ossos e a pele da sola, mas acreditávamos que ia sarar. Tinha de sarar. Que outra coisa poderia acontecer?
Mas não sarou. O buraco continuou lá. Os curativos não operaram milagres. E, pior, os enfermeiros condenaram alguns dedos de seu pé, para os quais o sangue já não jorrava. Meu avô é negro. Os dedos estavam mais negros que o tom habitual de sua pele. Começou o pânico. Tarde demais, descobriríamos.
Uma maratona para tentar reduzir diabetes, sendo que ele tinha má circulação, além de má cicatrização, por conta das taxas de açúcar. Meu avô parou de comer tudo. De uma alimentação podre de colesterol e carboidratos a um nada de arroz integral e verduras. Quando comia uma fruta, nossa, era festa! Daí emagreceu muito. Muito mesmo. Começamos a ver os ossos de seu peito e sobre a barriga. Meu avô sempre teve um barrigão, com o umbigo saltado, que apertávamos, quando nós, netos, éramos crianças. Agora, magro quase famélico. E tornou-se um tanto ranzinza, irritadiço. E mesmo no estado de pânico em que toda a família estava, é bem provável que tenhamos relaxado sua situação... Havia dias em que ele ficava sozinho em casa. Minha tia e minha avó saíam. Hoje, na casa principal, a casa deles, só moram os três. Os outros filhos têm suas vidas à parte. Ainda vivemos muito vinculados aos velhos, mas, nas horas em que meu avô ficava sozinho, esse vínculo parecia distante, eu aposto. Não posso evitar a sensação de que deixamos de fazer algo... Sim, deixamos de fazer muito. Ele não se cuidou, mas nós também não cuidamos dele.
Os dedos mumificaram. O médico de Macapá decretou: "Vai ter que amputar a perna, abaixo do joelho. Além dos dedos necrosados, a ferida não sara porque não há circulação do joelho para baixo. Vai ter que amputar".
E mais desespero. Ele, minha avó e minha tia foram para o Rio, onde uma prima conseguiu consulta junto ao maior médico vascular do Rio de Janeiro. Do Brasil, provavelmente. Tudo deu tão certo, que achamos ser essa a esperança. O médico tentaria uma ponte de safena para levar sangue até o pé, desobstruindo as artérias da perna, e assim sararia as feridas. A única perda seria o dedinho morto e inútil. Um preço tão pequeno a se pagar...
A cirurgia foi dia 27, anteontem, às 14h. Antes de ir para a maca, ele me ligou. Estava cansado de ficar no hospital. Me disse para eu não me preocupar, que ia ficar tudo bem, que ele estava indo para a operação que o curaria e faria com que voltasse para casa, onde nos veríamos no dia 16 de dezembro. Ele tinha fé que estaria em casa antes do Natal e, não apenas isso, mas com as duas pernas, e a ferida já em processo de cicatrização!
A ponte não deu certo. A operação foi de duas horas da tarde até a boca da noite, até oito horas da noite. Os médicos tentando. Romperam muitas veias, não conseguiram fazer o processo. E como ele já tinha perdido muito sangue, acharam melhor interromper tudo. Sem sucesso. Sem sucesso. Não é suposto que a medicina nunca falha? Não é isso? Não é?
Ele está na UTI. Fico recebendo notícias a conta-gotas, através de terceiros... Ninguém liga, ninguém fala conosco, eu e meus dois primos, aqui em Fortaleza, só mesmo o titio, pai deles, que deve ser a pessoa mais controlada neste momento. Mas também, o que se podia esperar? Todos muito abalados. Meu avô vai, afinal, amputar a perna. E depois disso, o que vem? Nem consigo pensar... O mais triste foi o que soube pela minha mãe. Mesmo meio grogue, ele acordou, lá na UTI, era horário de visita, e falou para minha tia e minha avó, como se a cirurgia tivesse dado certo: "Oba! Oba!". A mesma alegria brincalhona com que dizia aquele "Aiai!". Talvez, a esta altura, ele já saiba da verdade. Que vai ter de extirpar a perna. Cortá-la na altura do joelho. Um homem ainda cheio de sonhos. Minha avó está muito abalada.
Eu entendo que esta dor não é sobre mim. E, por isso, dói mais, pois está fora da minha capacidade de contentamento íntimo e masoquista. Esta dor é de todos nós. É só dele. Porque continuaremos a amá-lo, é claro. Mas ele, com toda a dor que sentirá, ainda se verá como o herói amado que sempre foi para nós? Não sei o que vai se passar na cabeça dele.
Meu avô, meu amor. Ele que ia comigo à escola no dia dos pais. Quantas vezes eu não saí por aí dizendo que eu era neta do Azevedo Costa? Disse isso mais vezes até do que disse meu próprio nome. Eu sempre amei este homem além das minhas forças. Nunca conversamos de coisas muito profundas quando era pequena. Nos amávamos naqueles silêncios de quem se compreende e se preocupa um com o outro, sem precisar dizer. Soube que a única vez que viram meu avô chorar, foi quando minha mãe disse que estava grávida de mim. Uma situação triste... Era uma jovem de 21 anos, grávida de um namorado qualquer, a quem amou, mas que, meses antes, engravidara também outra mulher. Eu sou fruto de lágrimas e frustrações. Eu sou o diploma que minha mãe trouxe de Belém quando fora, naquela época, estudar fora de Macapá, a cidade Natal.
Mesmo assim, eu sou quem viu meu avô chorar uma segunda vez, naquela noite em que eu arrumei as malas pra ir embora do quarto deles e vir morar em Fortaleza... Esse é o homem que eu amo mais do que tenho lágrimas para derramar agora, e olha que são muitas. Eu queria fazer tanto por ele, assim como ele já fez por mim, e não posso. Está além da minha limitada capacidade. Lembro de todas as vezes em que eu disse "Te amo, vô". E ele nunca respondeu "Eu também", mas sempre "Obrigado". Um agradecimento que eleva as palavras a outro nível. Meu avô... Que sempre acreditou em mim, mais do que eu mesma. Um dia perguntei para ele, na última viagem que fez a Fortaleza, perguntei: "Vô, o senhor acha que um dia eu vou me tornar uma escritora?". Ele respondeu: "Você já é".
Meu vô. Teimoso. Autossuficiente. Agora, incapacitado pela própria tolice. E pelo nosso descaso. Por um estúpido botão seco de pele, que escondia um abismo. Eu não me importo de amar a este herói amputado. Eu o amaria até mesmo se ele já não existisse mais. O que mais dói em mim, porém, é pensar na dor que ele vai sentir ao se ver assim, tão limitado. Tão frágil, tão perto da morte. Tão longe dos sonhos políticos que ele ainda albergava. Preso a cama, a casa, a cadeira de rodas, a lágrimas... Certamente ele chorará agora. Já não será o homem que chorou apenas duas vezes. Fico pensando em todo o sofrimento que ele experimentará. Ele já estava sofrendo de dores. Agora virá a ausência. Eu penso em depressão, em pânico, em sentir-se inútil, obsoleto. Tudo isso batucando dentro da cabeça do meu herói. Tudo o que eu queria era poder dizer para ele: "Eu te amo, vô, o senhor tá vivo, vai ficar tudo bem!". Mas eu sinto, eu sinto bem fundo, lá onde a alma encontra o espírito, eu sinto que já não haverá mais um "vai ficar tudo bem...". Sim, acostuma-se a tudo, o ser humano é desse material maleável, embora frágil. Sim, meu herói não está morto. Mas um herói amputado se deixa amar?
Mais importante: a morte mais dolorosa são essas pequenas mortes que vão matando a gente aos poucos e dolorosamente e prolongadamente, ainda quando se está bastante vivo.