terça-feira, 13 de outubro de 2015

ALEGRIA

nem tudo estará perdido
haverá ainda fogos de artifício
anunciação

nem tudo será pão com presunto e margarina
embora isso também, à sua maneira, seja tão bão

haverá ainda
umas novidades
passeios
banhos de mar
recompensas
honrarias

haverá
refrigerante
teu bolo preferido
alguém que mate a barata
um abraço inesperado

haverá ainda o impossível possível
tartarugas mínimas
um suspiro na noite
um sussurro
uma beleza sufocante e toda tua
(e nua)

não será sempre este mar de angústia premente
de incerta paisagem
neblina rasgante

haverá um cheiro bom de tempero
de fritura
ranhura amável na janela
no vidro de uma casa que range bem
e aconchega

haverá violetinhas no parapeito
ninguém varrerá as buganvílias que caírem no chão
nem a purpurina intoxicante dos jambeiros
nem o ipê amarelo
nem as folhas secas mortas solenes

estarão todos na convenção da tarde quente
te assistindo a envelhecer, sorrindo
será macio o dia
como o cheiro de roupa limpa nos lençóis

haverá café
haverá fumaça de castanhas tostadas
debaixo do pé mais alto de cajueiro
haverá riso de crianças
e sonhos que passam sobre o telhado da casa
nas asas de um casal perdido e ímpar de araras azuis
fugidas
sabe-se lá de que gaiola
e agora ziguezagueando livres
pela mata da tua casa

esses sonhos sem pressa voarão
para fora e para dentro do teu peito
todos os dias,
te pertencendo com espantosa liberdade
de serem o que quiserem
de irem e voltarem
sem qualquer crise ou alarde

e terás ao lado de ti
alguém para quem
preparar um banho
com água quentinha
esquentada em fogão
e umas folhinhas cheirosas que fossem talvez
alecrim

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

NO DIA DAS CRIANÇAS EU TAMBÉM CHORO, PARA NÃO VARIAR EM NADA

Neste dia das crianças, fiz minha irmã chorar. A ligação caiu duas vezes. A malha densa e confusa da vida e do amor em meio à tecnologia. Não era bem isso que eu queria dizer. Mas disse.
Vamos de novo.
Era dizer... Que me sinto triste. Antes mesmo de articular o pensamento, já reviro os olhos. Às vezes não me suporto. E tenho saudades da minha irmãzinha. E que às vezes me canso de me sentir assim tão triste, mas há realmente poucas coisas que eu possa fazer.
Mamãe me liga e a pequenina pede para falar comigo imediatamente, interrompendo a conversa primeira, coisa que muito me diverte. Vamos então conversando esta segunda e mais importante conversa, em que ela me conta de seu dia das crianças, e do presente que ganhou, e diz que está com saudades de mim, e digo que estou também, e faço mil perguntas, para alimentar a conversa, porque às vezes ela fica em silêncio, porque às vezes não sabe continuar, mesmo querendo falar muito.
E em meio às perguntas que ela vai me respondendo, é dela que vem subitamente a pergunta que me enlaça apertado:
- Bárbara, a tua voz tá triste... Por que a tua vozinha tá tão triste assim?
Essa criaturita tem só seis anos e já sabe ler a tristeza no outro. Coisa normal quando se gosta, vai ver. Ela me diz que não gosta de me ouvir triste e então começa a ter a voz tremendo e a chorar, mal me dando tempo de explicar que a única tristeza na vida mesmo é não conseguir lidar com ser adulto. Digo a ela que minha voz está um pouco rouca, mas não é nada. Que o que me abate são coisas da faculdade, preocupação com os estudos... É verdade. E penso em lhe dizer que não entendo nada de Blanchot, que cada Blanchot custa os olhos da cara, que o objeto de estudo não quer se delimitar sozinho, e igualmente toda a minha fundamentação teórica para o pretenso projeto de mestrado sozinha não se lerá. Que a porta está aberta, disse Deus, mas tenho medo de eu mesma num boicote sublime ir lá e fechá-la.Trabalha, desgraçada! A desgraçada sou eu. Eu resumiria dizendo que minha cabeça dói, mas tem neosaldina, e afinal ficaria tudo mais que bem, e não há pressa. "A única pressa é viver, o resto é festa", são as palavras de nosso avô, que volta e meia sempre me ocorrem.
Mas agora ela chora muito e já não há como consolá-la. A ligação cai. Sinto-me ainda mais triste e estou chorando também. Não tenho como retornar o telefonema. Mamãe retorna, e assim que atendo, vai logo querendo saber que conversa séria foi essa que tivemos que fez a menina se desmanchar em lágrimas e até orar por mim naquele instante mesmo (porque eu havia pedido a ela assim). Explico que ela achou minha voz triste, e que eu lhe disse que triste mesmo era ser adulto.
Vamos ao telefone outra vez, eu e Laura. A voz dela é de matar qualquer coração. Eu então a distraio. Ela volta a me falar de brinquedos, de quando nos virmos de novo, de todas as coisas maravilhosas que faremos nas férias, e de tudo o que já passamos juntinhas. E eu menciono a ela um vídeo que gravei de uma conversa nossa quando ela tinha dois anos. Digo que depois lhe mostro. Ela me pergunta empolgada se ainda existe por aqui um estojo de pincéis e gizes que dei a ela quando era menor, quando morou uma temporada comigo. Como pode se lembrar ainda disso? Me impressiono, se era tão pequena... Vou lhe explicando que as coisas se extraviam. Ela brincou à exaustão com a maletinha de arte e que nenhum lápis sobrou. Compramos outra em breve, quando nos virmos. Ela se empolga, fala da menina da escola que tem uma maletinha assim, cheia de pincéis, e é de uma princesa. Vamos falando nossas besteiras de irmãs. Dado momento, de novo a ligação cai. Dessa vez, mamãe não retorna. Volto a pensar: em pleno dia das crianças faço minha irmã chorar...
O veredicto é fatal, fatídico: sofre a pequenina das mesmas tristezas intestinas que sofro eu. E ainda sofrerá mais nesta vida, com uma sensibilidade que detecta tristezas no ar, nas vozes, e faz do humor do outro o motivo e o delírio da sua angústia ou euforia.
Mas por ora não lhe direi nada disso. Descobrirá, afinal, sozinha. E pode ser que faça disso tudo uma outra coisa, novíssima. As pessoas são diferentes. Por ora, não lhe conto nada. Vamos falando de bonecas, pincéis, e sonhos... Enquanto as operadoras e os telefones nos permitirem.