domingo, 15 de março de 2015

ARE THOSE THE FACES OF LOVE...?

Cansei. Cansei de mim. Cansei de ti. Cansei de tentar entender.
Mas a gente se acostuma a certos cansaços... A gente se acostuma, e por isso mesmo hábitos, mesmo os mais extenuantes.
Toda combinação de letras forma o teu nome. É este o meu hábito. Te procurar, te procurar, te procurar..., até endoidecer dentro de mim. Era como a história de uma prima minha de não sei que grau, distante mas presente, que visitei num dia fúnebre. O bebê ia se chamar Heitor, porém partiu. E na maternidade, ela tão mal, em todas as camas ao redor, em vez de ler "leito" lia "heitor".
heitor heitor heitor HEITOR HEITOR HEITOR se repetindo infinitamente, seguido de números que ela não discernia, o número de cada leito, o número de Heitores que ela perdeu a cada segundo, ao lembrar a dor de perder o único.
Não entendia o motivo daquele castigo, não sabia quem o infligia. Ela só chorava. Por que, por que, além de não ter o filho, ainda era obrigada a ler o nome dele em todo canto, naquela espécie de tortura?! Quem escrevera o nome dele ali, tantas vezes? Quem profanara o silêncio sagrado dos mortos? A criança que nunca falou... Não chegou a aprender sequer seu nome... E agora o nome se fazia a única coisa que sobrou...
Mas eu sei que teu nome não está em todo canto, e que a minha dor não se compara àquela. Eu é que procuro, eu é que procuro teu nome, eu é que quero te ler tontamente. Será que enlouqueci? Será que não passa nunca? Tenho medo disso. Tenho medo mais porque lembro da estrofe: "A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu"...
Será que vou continuar a arrumar um leito para ti, com lençóis de linho, com teu nome bordado, com lírios brancos e camélias vermelhas, mesmo quando sei que não virás, mesmo quando sei que teu nome nunca me veio, e tu nunca nem chegaste a se recostar ao meu lado?
E se eras um bebê que acalentei no meu colo, um bebê aberrante. Eras uma ideia, um devaneio que gestei e pari e ninei. E no final morreu porque nunca nem foi feto, não foi feito, foi montado com pedaços de algodão, saliva e éter. Te fecundei já natimorto, condenado à sepultura pequenina dos meninos que não vingam. Que pensamento triste... Às vezes sinto como se te parindo eu tivesse arrancado um pedaço grande de mim, e para quê? Eras tu uma gravidez psicológica. Mas como me arrebentou a cabeça!

Traduzi Sylvia Plath e te encontrei, a história que não houve:
"Nuvens passam e se dispersam.
São essas as faces do amor, essas pálidas irremediáveis?
É por tal isto que agito meu coração?"

sexta-feira, 13 de março de 2015

CAVALEIRA MEDIEVAL AGUARDA O DIA DE SE DESPOJAR DA ARMADURA

Quando eu me calar saberás que é porque mais te quero. Mas chegará o dia em que meu silêncio será o silêncio de quem já partiu no veleiro dos que esqueceram teu nome. Muito embora agora: dentro da armadura medieval sou pasta cremosa, feita de Leite Moça, mulher, idiota. Vou me afundando no aço da minha vontade fajuta. Sou uma fraude. Forjei todas as resoluções -- não as queria, para dizer a verdade! Agora, em doses de cianeto, cada passo meu retumba como a escolha inevitável de um filósofo resignado que caminha para seu fim, querendo, é claro, ser como o mais covarde ou o mais cínico dos sofistas. De que me vale a grande e boa intenção? De que me vale perdurar, quando amoleço? De que me vale a água toda que me jorra, se a trocaria por um punhadinho de felicidade simulada, solar, a teu lado? Sou inesgotável sentir-se-só. Queria um barco. Fosse como fosse, fosse de papel, um barco. Que me levasse pela enxurrada da água da chuva até tua casa, na rua do doutor que descobri. Levei dois, três anos aqui, vivendo esta vida de trajetos normalíssimos. E agora em cada esquina o meu coração palpita porque toda esquina se tornou o próximo canto em que te encontro um tanto, mesmo que não estejas. Te recrio. Te reconto. Vou levando. Rotina. Acostumo. A armadura pesa. Tem dias que estou mais firme, tem dias que estou mais triste. Quando virá o escafandrista vestir a minha roupa de soldado? Eu passo a tocha a chama acesa o fogo o lastro. Quando eu terminar de sofrer, começará teu sofrimento, escafandrista. Serás tu a olhar por tuas janelas, tua escotilha, perguntando-se: "Onde está...?". Onde estou? Estarei longe. Tão longe que nem mesmo o murmúrio do teu pensamento poderá me alcançar, nem mesmo se usares o barquinho de papel que eu deixei para trás, ancorado a teu porto. Teu porto era vazio quando cheguei. E agora voltas a ele, e já escurece, e acenas do píer da sombra de um querer que se esquivou e de repente voltou atrás quando era tarde demais (e sempre foi, tendo começado na quadragésima primeira primavera nublada, quando já se corria a corrida marítima dos velhos rumo a canto algum...). Chegará o dia, escafandrista, em que esquecerei até qual era a ordem do teu nome. O que vinha antes, o que vinha depois... Não mais importa. Tu és água que passou. Por ora, derreto por dentro, ainda que por fora endurecida. Mas chegará o dia.

SOÇOBRO

Tudo o que eu tenho guardado num porta-joia de pérolas são escamas, ásperas. Arranquei-as contra a vontade do peixe. Sufoquei-o com uma moeda de prata. Não era a mesma moeda e nem era o mesmo peixe do Evangelho. Era um dobrão de intenções todas perversas, nele lavradas. O peixe morto voltou ao mar e eu fiquei com as mãos cortadas, com a água pairando à altura dos artelhos, e cabelos molhados como que feitos de algas azuis e enxofre. E quando me dei conta era na minha glote que a moeda girava, fincada, e nos meus olhos é que as escamas como garras se escondiam. Esta terá sido no futuro do meu passado a crônica dos meus amores, esfacelados, descrita nos pergaminhos indeléveis de aço cromado cheirando a peixe. Escamas frágeis que fingi joias. A coleção completa esquecida dentro da caixinha de pérolas silenciada na gaveta da escrivaninha Luís XVI do antiquário da rua Campo Amor que negocia agora nenúfares porque no futuro se descobriu que nós do século superado havíamos entendido errado todo o conceito do que tem valor.