quinta-feira, 26 de maio de 2011

MALDITO BENZALDEÍDO

Não gosto de falar de amor porque não me dou bem com ele. O último amor que tive foi arrancado de mim ainda na infância. Por isso mesmo é que, hoje, desgastado, já não tenho coração. Ademais, tenho um cachorro. Que é menos meu do que de minha vizinha, uma menininha loira de olhos castanhos, que certamente um dia irá morenecer...
Tenho medo desses escritores que falam de amor como se falassem de bife. Não quero me prolongar. Mas também temo aqueles que descrevem o amor sem conhecê-lo. Sim, não há problema em imaginar e, consequentemente, conceber o que não se conhece... Todo escritor faz isso, eu sei, sou um deles. Se viajei a tantos lugares como sugerem meus livros - lobos famigerados -, certamente metade dessas jornadas percorri sem sair da poltrona de minha sala.
Mas ainda assim sei que com amor não se brinca nem se inventa embustes. Fala dele quem o conhece, ponto. Fala dele quem o quer. Amor é coisa séria. E nunca o provei, indo com a colher até o fundo, mas sei que ele existe. Se não existisse, não teria eu tanto medo. E, admito, sou covarde.
A verdade, a verdade mesmo, é que fui podado muito jovem... Daí não me arrisco. Porque a casquinha da ferida me arrancaram demasiadamente cedo. Mas, se querem saber, eu conto.
Tinha só dez anos, veja bem. Uma idade insossa, eu até diria. Era novo na turma e havia uma garota. Ela sentava-se sempre ao meu lado. Não era bonita. Pelo menos ninguém lhe disputava a atenção. Mas, para mim, era linda. Era lindíssima. Tinha ares de precoce, madura. E um nariz adunco, desses de águia, com a ponta virada para baixo, que me fazia morrer de loucura por ela. À época, aquele nariz povoou muitos sonhos meus... Não posso dizer o que nos leva a amar alguém. Só posso dizer que a primeira coisa que amei foi aquele nariz.
Como nos sentávamos perto um do outro, eu na fileira da parede e ela na fila ao lado, não tardou fazermos amizade. Quer dizer, não sei. Éramos, pelo menos, colegas de trabalho. Eu não falava com ninguém. Extremamente introspectivo – e vejo aqui a falta de originalidade, o velho clichê do escritor solitário que se repete desde a infância. A guria, por sua vez, apesar de estar havia mais tempo que eu naquela escola, também não tinha muitos amigos ali. Por algum motivo obscuro as meninas a evitavam... Éramos então duas almas sozinhas que se aderiram, inevitavelmente.
E lembro-me ainda hoje como se fosse água... Complexa, mas transparentemente: terça-feira, alguma de junho. Foi então que me apaixonei por ela por completo. A situação: nós emaranhados entre mínimos e máximos denominadores comuns, ela se debruçou sem se dar conta sobre mim e eu senti o cheiro indescritível de sua pele.
Ah, meu Deus... O que foi aquilo? Ela tinha um daqueles cheiros doces e suaves que a gente sempre quis sentir, mas nunca descobriu em ninguém, e fica por parecer mais uma mentira de cinema. Cheiro de... Cheiro de... Eu não consigo dizer. Doce e suave, doce e suave, doce e suave. Não fui capaz de pensar em mais nada. Fiquei maluco. E segui para casa assim, no banco da frente do ônibus, pensando “que cheiro poderia ser aquele?”. Que nome ele teria, como decodificá-lo...?
Lá pela madrugada, mofando na cama, decifrei. Ela tinha cheiro de amêndoa. Amêndoas... E será que tinha gosto também? Só pude concluir que aquele aroma era todo dela, todo dela, irrepetível, de mais ninguém.
Ao longo dos meses, fui arrumando desculpas para me sentar mais ao seu lado, colado. Ela, com seu narizinho de ave feiosa no rosto magro, dizia-me que sim, eu podia, contanto que fizesse silêncio. Ela queria prestar atenção à aula. E eu faria, é claro, silêncio, entregue e rendido. Só me interessava cheirá-la...
Um dia, lá pelas tantas, descemos as escadas conversando e acabamos passando o recreio todo juntos. Num banco qualquer, no pátio da escola. Ali, em tom de confissão, ela me disse que odiava seu nariz, que tinha alergia a ovo e muito medo de morrer. Eu afirmei a ela que não, nunca, ela não morreria nunca! Ela era muito bonita para morrer. E, com mão suada, aproximei-me, naquela voz de quem ainda nem sabe dizer: "Você é tão bonita que me dói aqui por dentro". Tentei, ato contínuo, beijá-la. Ela, igualmente, me repeliu. Saiu correndo, espantada, e só deixou às minhas vísceras já tão doridas o doce rastro do seu misterioso cheiro amendoado. Lúdico-lúgubre-lúbrico amendoado.
Não nos falamos mais. Nunca, nunca mais. Permanecemos na mesma escola, até os dois anos seguintes, inclusive na mesma sala. E foi só. Um dia, quando estávamos já na casa dos treze, e ela não mais na mesma turma de sétima série em que eu, acabei por vê-la, numa tarde chuvosa, em frente ao portão de sua casa (eu a seguira secretamente até ali tantas vezes...), sim, a vi entrar num carro prateado.
Estreitei então meus olhos. Lá dentro, um cara. Por volta dos 40, grisalho, uma das mãos ao volante. Tinha barba, tinha paletó, tinha aliança. Através do para-brisa rasgado pela chuva, vi aquele ser estranho beijar a menina morena e cheirosa que, mesmo oniricamente, tanto me pertenceu.
Mais tarde, em outras tardes, de chuva ou de sol, outros momentos da vida, cheguei a vê-la entrar de novo em outros carros. E foi assim, com tantos carros, que ela deixou de ser minha.
E, um dia, eu já no ensino médio, li em um livro pesado de química orgânica a respeito do aldeído que, ligado a anel aromático, recebe o nome de "benzaldeído". Este capricho de nome feio tem, por sinal, um cheiro maravilhoso. Imita o de amêndoas. É usado comumente na fabricação de perfumes.
Comumente.
Bem... Bem. De raro e precioso, a ilusão só tem o tempo que dura. E foi assim que percebi ser hora de superar. Que eu já não podia também ser dela. Que ela nunca fora minha. Que essas coisas todas passam. Sim, um dia, elas todas passam. E não deixam nada além de vagas noções de química...