domingo, 20 de abril de 2014

FROLIC

A carne acabou ficando muito salgada e por isso imprestável, a solução foi jantar a sobremesa. Um prato assim enorme de brigadeiro e dois adultos ridiculamente rendidos a um prazer tão adolescente. E há idade para isso?
Duas colheres duelavam no campo de batalha, indo pelas beiradas, que era onde estavam as melhores partes, as casquinhas queimadas. Estranho que a disputa não fosse pelo meio, e sim pelas bordas. É que nós dois gostávamos de tudo quanto fosse marginal, porque terminava mais gostoso, crescendo à mercê do capricho, da rebeldia, da liberdade de não ser o centro da atenção.
Na época dessa janta, se fazia amor ouvindo Phoenix, e isso era uma coisa para lá de boa. Interromper pra ir trocar o CD. Importante era durar. Era a experiência toda, não o ponto final o ponto mais importante. Bem, talvez fosse e estou mentindo só para deixar bonito e impraticável.
Mas aí então no final depois de tudo consumado e a última faixa ter silenciado ainda ficavam os ecos das canções na nossa cabeça, porque foram experimentadas à exaustão e até o fim da margem do delírio, que é a doce queda. Daí depois a gente assim cantarolava os refrões trocados, ia fundindo os primeiros trechos e depois imitava com a boca aos risos o solinho havaiano de Branco em Lasso. O brilho frólico no rosto na manhã seguinte se lia e já se sabia: fez ouvindo Phoenix.
Mas nas jantas daquela época também tinha outras coisas...
Agora não lembro.
Talvez a gente conversasse bastante e profundamente, mas no final eram tudo besteiras.
Houve aquele fim de semana em que eu não soube mais o que dizer e de repente ficou assim estranho, mas um estranho bom. Era provavelmente o passo à intimidade. Vai-se descuidando das palavras, os silêncios ficam mais significativos, silêncios, só te tocar, e sorrir, a não necessidade de se conhecer. Para quê? Já se conhece. Até o cravo já se tirou.
Toda vez que eu olhava para aquele pontinho preto na margem inalcançável da bochecha, mais assim pra perto da orelha, dava uma vontade danada de enfiar as duas unhas e espremer sem dó! Não. Ainda não havia jeito: não éramos ainda tão ligados. Ainda do clube da porta do banheiro fechada e a luz do quarto apagada, mas o abajur, porque mostra encobrindo. Até que um dia só fiz me aproximar e fiz. Saiu a cobrinha branca e ele foi todo nojo e caretas e eu naquele prazer da asquerosa missão cumprida sem qualquer afetação. Depois nem lembramos, não restou vergonhas: deu certo e era já o império do silêncio íntimo.
Que mais? Amei tão ardorosamente que agora ainda lembro como foi difícil separar os discos quando foi preciso se separar. Sem brigas ou rancores, era só mais um passo na vida e eu odiei a vida e me embebedei loucamente sem entender que se não quisesse era só não ir, não viajar, era ficar, ou levar junto, que fosse. O clichê se mostrou verdadeiro. O clichê é cada vez menos clichê agora porque não há mais quem compre discos e CDs. Eu ainda tenho os meus e ele ainda tem os deles e na hora de a gente dividir a divisão foi tão certa que eu me pego às vezes pensando que deveria ter deixado lá meu álbum favorito só para ter motivos de rancor. Mas não tenho. Às vezes quero voltar, jantar miojo e brigadeiro. Cruzar as quatro pernas, meias no falso frio da noite, conversar na penumbra da sala tomando vinho barato porque sim, é gostoso. Mas isso não se faz com uma criatura aqui e a outra criatura lá no apartamentozinho tão charmoso porque então ainda era marginal ter um apartamento charmoso num bairro deplorável e a vida foi tão boa e simples que agora eu me pergunto qual a necessidade de mudar os móveis de lugar e tomar decisões assim na vida que estava tão boa, e foi uma vida boa sem deixar de ser boa nunca até o momento em que, espera!, vamos parar. Doeu quando tirou a barba e foi tipo isso mil vezes mais e regado a uísque contrabandeado do senhorio do novo prédio nesse novo país estranho e desconfortável.

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