domingo, 19 de dezembro de 2010

CASA, AMOR E GASOLINA (parte I)

Ele chegou tão desnorteado em minha casa que, a princípio, tive medo. Veio até a porta arrastando-se pela calçada coberta de graminha como um coxo, deixando um rastro de sangue atrás de si, e uma poça escura bem no lugar onde parou sem ar.
No momento, eu acabava de sair de casa, estava ainda com as chaves na mão e mil coisas para fazer, quando avistei aquela massa humana e ensanguentada vindo em minha direção.
O pânico foi imediato, assim como o choque, que me paralisou. Contudo, bastou fitar seus olhos logo abaixo de mim para que uma pena brutal me atingisse em cheio. Não havia muito que fazer, afinal. Sendo enfermeira, deixei o instinto de sobrevivência de lado e acionei o instinto “ajudar ao próximo”. Larguei a bolsa e as chaves no chão e me agachei em direção ao seu rosto bronzeado, de alguém que trabalhava no sol. Estava retorcido de dor. As mãos que tentavam agarrar meus braços em busca de ar e socorro eram calosas como as de um pedreiro.
- Ei, camarada... Tudo bem aí? – obtive apenas um grunhido resfolegante como resposta.
O homem parecia um cachorro estufado, babão e à beira da morte.
- Ok. Vamos te tirar daqui.
Não foi fácil arrastá-lo escada acima até a varanda sob o alpendre. Reclamei um pouco, falando comigo mesma, enquanto pensava na melhor forma de tratar os ferimentos que agora eu observava de perto.
Foi fácil reconhecer as marcas. Eu lidava com aquilo todos os dias, na escola onde trabalhava, ao tratar das crianças que conviviam de perto – algumas vezes até dentro de casa – com a violência carniceira. Aqueles ali eram buracos de bala. Nas pernas, no abdome, e um inchaço no ombro direito.
- Pesado, hein?! Vamos, só mais um pouquinho. Preciso pelo menos te colocar na sombra.
Instantaneamente, ele fechou os olhos, como se assim pudesse ficar mais leve.
Foi o que imaginei. Ofegava.
- Com que gente o senhor foi se meter?... Espero que não esteja jurado de morte. Isso seria realmente um problema. Pronto.
Vi um traço de humor macabro em seus olhos, quando ele os abriu e notou que eu começava a rasgar-lhe a camisa – que um dia fora – azul escura, encharcada de sangue.
- Você... Você sabe...
- Shh... Eu sei o que estou fazendo. Sou enfermeira.
- Por favor, me ajude – ele agarrou meu braço, cerrando os dentes para não gritar de dor quando comecei a procurar mais buracos em sua pele.
- Tudo bem. É o que estou fazendo.
- Será que você pode dizer onde estou?
- Bom... – eu olhei rapidamente para ele, franzindo as sobrancelhas. – Estás em Macapá, afastado do centro da cidade. Ahn... Estamos perto da Lagoa dos Índios.
- Macapá... Macapá... Amapá.
- Isso. Isso. O meu nome é Beatriz. Bia, se preferir. Acho que nesse estado não vais conseguir dizer o nome todo. Trabalho numa escola pública, no Cabralzinho, como enfermeira. Esta é minha casa. Estás na minha casa, no Buriti, e tudo vai ficar bem.
Eu falava, tentando distraí-lo, enquanto avaliava o resto dos danos com a mão empapada de sangue.
- Dói aqui? – apertei seu ombro.
- Ai!
- Está fraturado. Provavelmente a clavícula. Mas que coisa, hein? Precisamos ir para o médico. Acho que te trituraram... O que tu fizeste?
Ele fechou os olhos.
- Eu atrasei você.
- Realmente. Mas duvido que seja por isso que te moeram desse jeito.
- Por favor... Não me deixe aqui... Eu vou morrer. Não estou vendo direito.
- É o menor dos seus problemas. Tudo bem, já disse que não deixo. Você escolheu a porta certa para vir morrer, porque não vai. Mas agora... Tu também precisas me ajudar, certo? Vou ter que te colocar dentro de um Fiat velho e apertado e correr para o hospital. Mas para isso precisas levantar e se apoiar em mim, pode ser? Vamos no três. Um... Dois... Três. Isso. Muito bem. Meu carro está logo ali. Só mais um pouquinho. Aguente firme!
Aquele foi um dia surreal. Eu saíra de casa às seis da manhã, para encontrar um moribundo ensanguentado bem na porta. Um moribundo sem nome, sem pistas, sem memória.
Mas isso não significava que eu ia ficar sem respostas.
Ele havia feito com que eu perdesse uma segunda feira agitada na escola... Não fazia mal então que, em troca, fosse submetido a um pequeno interrogatório.
Mas eu duvidava que ele fosse se lembrar. Não conseguia raciocinar direito, os olhos estavam vidrados, os membros convulsivos, e a barriga toda furada. Até mesmo depois de atendido, quando voltei com ele em silêncio para a minha casa, seu olhar perdido permanecia confuso.
Era, sem sombra de dúvidas, um bandido. Devia estar metido com gangues, drogas, roubos, alguma fuga do IAPEN... qualquer tipo de coisa assim. Eu não duvidava e, apesar disso, não tinha medo. Só o que corria pelas minhas veias era uma curiosidade mórbida. Tentei controlá-la até que ele estivesse instalado. Na minha casa.
A amnésia momentânea tinha vindo bem a calhar. Por uns dias, até a recuperação completa, ele estaria fora das ruas e, se Deus quisesse, em segurança. Trancafiado num dos quartos da minúscula casa de uma enfermeira solteira e de poucas posses. Bem. Eu duvidava que ele pudesse reclamar de algo. Mal falava, e aquela situação deveria ser muito melhor que seu estado anterior.
O médico havia dito que a perda de memória se devia, provavelmente, a alguma experiência muito traumática que ele vivenciara havia algumas horas. Talvez demorasse uma soneca para voltar. Ou talvez as memórias sumissem por meses. Ou talvez não voltassem. Era difícil precisar, principalmente com tão poucos mecanismos, e ainda por cima precários, como o que havia no hospital onde o levei. Era muita ciência, muita predestinação, muito surrealismo para um médico cansado e cheio de olheiras de um hospital quase interiorano.
Então, eu e o baleado ficamos acertados tacitamente que ele permaneceria em minha casa.
Numa noite, depois de trocar suas bandagens, enfaixar com gaze nova os seus pontos de bala, e massagear a clavícula quebrada com azeite de andiroba, ele adormeceu.
Com calma e silêncio – coisas antinaturais numa pessoa elétrica e falante como eu -, tive o cuidado de colocar sua tipoia de volta como se estivesse tratando de uma criança. Então pude olhar melhor para ele.
Fazia duas semanas que estávamos naquela rotina. E ainda assim todo dia parecia algo novo. Ele me olhava, e me olhava, e me olhava... Enquanto eu tratava dos ferimentos. E nunca dizia nada. Quase nada. A não ser, é claro, aquele “obrigado” murmurado e emocionado depois de cada dia de curativos e esparadrapos.
No total, ele parecia um homem calmo. Algumas vezes, eu me excedia e falava tanto, mas tanto... E ele ouvia. Isso era o mais engraçado. Tinha comentários estranhos, engraçados ou inteligentes para fazer sobre o que quer que eu dissesse, e ainda assim não se lembrava de nada antes do dia em que chegara arrastando-se até a minha porta. E agora eu tinha certeza de uma coisa: ele não era um bandido.
Não um bandido no sentido mais brutal ao qual costumamos associar. Não... era algo mais. Podia até ser do tipo obscuro, o que eu duvidava, mas havia nele uma passividade régia, um jeito calmo, controlado, reservado de conversar. Sua voz era sóbria, seus gestos eram contidos e ele nunca reclamava. Transpirava até certa autoridade. E apesar de tanta calma e paz, os seus olhos transbordavam mistério e palavras. Vinte e quatro horas por dia.
Olhei para ele. Tirei-lhe aquele monte de cabelo liso da testa e penteei-os para trás. Sim, agora estava com os tais olhos fechados. Mas normalmente, esses mesmos olhos, olhos cinza, costumavam olhar para mim como se soubessem quem eu era, o que queria, como se conhecessem meus planos, minha alma. Havia um calor sinistro e provocante ali dentro. Um calor que beirava a estupidez romântica dos poetas. Um desses calores que a gente encontra nos olhos da nossa mãe, ou nos nossos próprios olhos, quando estamos de algum modo apaixonados. E seja pelo que for.
Ele tinha esses olhos. Cinza. O que me fez deduzir que não era um nativo da minha cidade. Mas não apenas por suas características genéticas, tão patentemente “sudeste”, “sul”, ou sei lá o quê... Mas também pelo sotaque. Era difícil de rastrear.
No dia seguinte, depois do café, ele pediu que eu o levasse até o deque. Não era normal que eu o arrastasse pelos minúsculos cômodos da casa, mas algumas vezes ele gostava de olhar para fora, pela varanda do quarto onde estava ou ainda pela janela de trás, que dava para a lagoa.
Minha casa era pequena, como se feita para alguma boneca Polly. No entanto, havia ali uma graça infantil que me encantara desde que eu saíra da casa dos meus pais em busca de um lugar só meu. Eu tinha dois quartos, um banheiro, uma cozinha, uma sala ampla no térreo e um deque, numa casa de dois andares. Era tudo o que eu precisava. E, afinal de contas, sem pagar nenhum centavo, já que o imóvel tinha sido presente do papai. Um brinde à independência dependente!
Ao ar livre no deque, ajudei-o a sentar-se numa das cadeiras acolchoada e redobrável e ficamos a observar o céu nublado de dezembro. Imaginei que o tempo não estivesse exatamente “frio” se comparado ao frio que ele estava acostumado - se fosse mesmo do sul ou sudeste -, mas ainda assim, passados alguns minutos eu voltei ao quarto e apanhei um edredom para envolvê-lo. Com o braço direito imobilizado, e o resto do corpo enfaixado, ele não fazia quase nada sem ajuda.
- Obrigado – disse com um sorriso largo, embora rápido, enquanto eu voltava a me sentar.
Ficamos assim um tempo, em silêncio. Eu terminava a minha caneca de Nescau quente. De vez em quando ele me olhava pelo rabinho do olho.
- Quantos anos você tem? – ele perguntou de repente. Fiquei um pouco embaraçada.
- Por quê?
- Por que o quê?
- Por que queres saber?
- Por... Curiosidade.
- 23. E tu?
Ele me olhou e sorriu.
- Ops! Desculpa.
- Tudo bem. Não é culpa sua eu não poder lembrar.
Eu sorri aliviada.
- Obrigado pelo que está fazendo, Bia.
- Ah... – descartei o agradecimento com a mão. – Não é nada. Costumo ajudar desconhecidos baleados que batem à porta da minha casa e melam meu carro de sangue. É uma espécie de hobbie.
Ele riu.
- Sabe... Amanhã é véspera de Natal. Já tens planos?
Ele me olhou captando meu ar sardônico.
- Você é insuportável às vezes.
- Eu sei!
- É claro que tenho planos. Vou fazer o que você fizer.
- Bem... Então aí complica.
- Por quê?
- Meus pais... Eu passo todo Natal na casa deles. Não sei se eu poderia dessa vez, contigo aqui.
- Mas por quê? Você pode ir, se quiser. Não se preocupe comigo.
- Eu gostaria que tu fosses comigo, essa é a verdade. Mas acho que meus pais estranhariam. Seria estranho, não seria? Contar isso para eles... Bem, fico imaginando quantos anos tu tens.
- E que isso tem a ver com a conversa que estamos tendo?
- Ah, teus olhos dizem que deves ter uns trinta. Não vou chegar em casa toda saltitante e, do nada, apresentar um namorado de trinta anos. Cairia mal. Também não posso esclarecer todo o potencial de bandido que tem o seu histórico recente. Então o jeito é ficarmos por aqui.
- Isso não me parece bem.
- Ei, eu mando aqui. Sou eu quem ainda está com a memória legal, esqueceu? Quem pode se lembrar do próprio nome faz as regras.
- Ok. Você manda. E o que vai dizer pra eles?
- Eu me viro. Gostas de peru?
Ele fuzilou-me com os olhos, mas riu.
- É o que vamos descobrir.

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