sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

LIQUEFAZER-SE EM ALEGRIA

O surrealismo o apavorava. A realidade também. Gatos que espreitam no escuro, noites de tempestade, comida azeda, mulheres lindas demais para ser verdade.
Ele tinha medo de flertar no trânsito – mesmo sem ter um carro –, de engolir uma moeda, de magoar quem quer que fosse, e por isso não tinha amigos.
Cigarras que cantavam de modo sinistro anunciando a queda da tarde, adeus ao pôr-do-sol, simplesmente o apavoravam. Ele andava sempre nervoso, as mãos nos bolsos, porque senão corriam o risco de cair. Cigarros jamais, cigarros matam.
Nunca comprara um carro, por receio de um dia, sem querer, arrancar o volante de seu lugar o perder o pouco controle que tinha.
Objetos domésticos não o obedeciam, cachorros enxergavam suas pernas como postes ambulantes. Crianças nunca sorriam. E nada era marcado, nenhum lugar reservado, nenhuma corrente amiga para aquele sujeitinho acabrunhado, amarelo, triste.
Ele era patético.
Mas um dia, que dia!, ele foi feliz. Há um longo tempo, por um curto instante...
Quem não trocaria uma vida inteira de exclusão e existência morna por um átimo de felicidade?
Ele trocou. Foi muito breve, muito breve mesmo, mas quem na realidade determina a vastidão dos fatos é a intensidade deles.
Ele estava no cruzamento de dois semáforos, afogando-se na massa de gente que guerreava por um pedaço da faixa de pedestres, quando veio aquele click – aquele click – que é sempre o prenúncio de que algo foi deixado escapar e era importante; o “click” tão bonitinho e tão mortal que soa em seus ouvidos quando você esqueceu seu filho na escola, a reunião importante na firma, ou o gás aberto. Tão perfeito som, tão útil estalo...
Ele se deu conta, naquele momento, de que até então só o que tinha feito em toda a sua vida fora escapar. Agora mesmo, ali, parado, esperando o trânsito infernal dar uma trégua em meio àquela noite fria, o que estava a fazer? Ele escapava da dura jornada de trabalho, escapava para um apartamento tão estático e sem graça quanto ele mesmo, escapava do mundo inteiro porque tinha medo. Medo. Duas sílabas. Medo de tudo. E junto com o click – o estalo baixinho no ouvido, aquela noção de que seu mundo vai mal e você precisa correr contra as circunstâncias – veio também a decência de, pela primeira vez na vida, correr – de encontro a, a encontro de.
E ele correu. Atravessou a brita crua pelo meio dos carros em movimento. Largou a pasta, que se abriu, fez voarem os papéis.
Gritou. Esperneou de súbita
extrema
suprema
felicidade.
Comprou uma caixa de cigarros, sem deixar de correr, estraçalhou um por um, e depois os comeu sem nem pestanejar.
Ainda frenético, rasgou o paletó, correu mais pelas ruas, um pouco mais, um pouco célere, tirou a gravata, amarrou-a na cabeça como um diadema, jurou que era Rambo. Professou em voz alta para quem quisesse ouvir. E as cabeças apavoradas viravam-se nas calçadas para fitar aquele louco.
O próximo passo foi subir no meio-fio, encostar-se ao parapeito do viaduto, pular de lá de cima e não sentir mais nada – nem medo, não, nem medo, nada de medo! – enquanto seu corpo caía numa velocidade sennômica em direção à água escura.
O mergulho foi tão gelado, tão bom, ensandecido, e as borbulhas que brincaram na pele como um beijo impossível da namorada que nunca existiu. Bem, bem, ele se liquefez naquele mesmo átimo, e por um instante de luz eu sonhei que quem se desfazia não era ele, era eu.
Acordei suado.

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