domingo, 19 de dezembro de 2010

CASA, AMOR E GASOLINA (parte II)

Nossa véspera de Natal juntos, apesar de tudo, foi especial. Eu tinha montado a minha árvore ainda no mês de novembro, e quando o dia 24 enfim chegou tudo já estava pronto. Bastou colocar os presentes sob a árvore e comprar os ingredientes para a ceia. Tudo sairia delicioso, graças aos segredos culinários legados a mim pela minha vó. Eu faria daquele o melhor Natal para ele.
O que não era imediatamente tão difícil, levando em conta a falta de concorrência graças a sua perda de memória.
- Oi, cheguei.
- Oi... – ele veio mancando da cozinha, enquanto segurava o braço na tipoia. Começara a se movimentar melhor pela casa e já fazia pequenas tarefas.
- Tudo bem?
- Tudo. Deixa-me ajudar você com essas sacolas... Só as mais leves. Não quero me estripar.
Ele parecia estar escondendo alguma coisa. Posicionara o corpo bem na minha frente, de um modo um tanto estranho e desengonçado, ficando entre mim e a árvore de Natal perto da escada, e tapando meu campo de visão. Arrastou-me para a cozinha.
- O que você trouxe?
- Tira a mão daí! Caramba... Comes que nem um adolescente.
- Talvez eu seja.
- Ha, ha. Essa é boa. Olha essa cara. Tens até pé-de-galinha!
- Isso é porque eu sorrio muito, você não reparou? E você também não é nenhuma jovenzinha.
Eu nem respondi, pois já estava concentrada em outras coisas. De repente, perguntei, enquanto ele guardava – não com pouco esforço – o peru no freezer.
- O que você tá escondendo? E, ah, deixe isso do lado de fora. Vamos cozinhar agora.
- Algo mais, chef?
- O que está escondendo? Vamos, diga. Não quero ter que usar seu codinome.
Ficamos acordados que, enquanto ele não lembrasse o próprio nome, eu o chamaria de MacGyver.
Quer dizer, eu decidira assim. Havia pensado isso logo no primeiro dia, quando voltamos do hospital, pelo simples motivo de que ninguém sobreviveria a tantas balas e tantos traumas se não fosse, pelo menos, algum pseudo hiper-agente digno de filme.
Ele não teve como reclamar. Na verdade, nem contestou: não sabia mesmo quem era MacGyver.
- De onde você tirou que eu estou escondendo alguma coisa?
- Dá para perceber. São esses teus olhos que te entregam.
Ele me ignorou.
- O que eu posso fazer?
- Comece lavando as frutas.
Ele fez uma careta.
- E tente não morrer com isso.
No mais, a festa foi boa. Meus pais ligaram à meia-noite e tudo correu bem com a troca de felicitações. Sem muitas perguntas, apenas o contentamento de que a filha estava crescendo. Depois das doze badaladas, tivemos a ceia e, quando satisfeito e certo de que gostava mesmo de peru, tivemos a troca de presentes.
Até onde eu sabia, não seria uma troca. Apenas eu tinha saído e comprado algumas quinquilharias para dar a ele. Inclusive um rolo de gaze, numa espécie de piadinha de mau-gosto. Mas a surpresa foi grande quando descobri um pacote suspeito na árvore.
- O que é isso? – apontei para a caixinha e apanhei-a.
- Vamos, abra. É um presente meu pra você.
Deixei cair o queixo.
- Como assim? Quando? Tu...?
- É, eu comprei. Na verdade, não eu. O seu vizinho. Eu pedi que ele me fizesse esse pequeno favor. É um senhor muito simpático, por sinal, mas não pouco curioso. Enfim, contornado esse problema... Ah, claro. O dinheiro. Foi tudo pago com muita dignidade, ouviu? Eu gastei aquela grana que nós achamos no bolso da minha calça jeans, na noite em que vim bater aqui, ensanguentado.
- Eu lembro. Era uma boa grana.
- Mas o presente não é nem metade do que eu queria dar. O que você fez aqui comigo foi... Realmente... Algo estranho. Duvido que alguém mais fizesse. Na certa você pensou que eu fosse um bandido ou sei lá, mas eu não... Eu quero muito acreditar que não sou. E que esse dinheiro comigo era realmente meu. E com ele eu posso fazer o que quiser. E dar um presente a você. E agradecer pelo que fez até aqui. As roupas, a comida, a casa... Eu... Obrigado.
- Claro.
Não quis dizer mais nada. Estava extasiada, surpresa, atônita. Abracei-o.
- E agora é a parte em que você abre.
- Ah, desculpe! – eu ri. – Ainda estou meio pasma.
- Não fique. Até onde eu me lembro, as pessoas costumam ganhar coisas no Natal.
- Você não lembra – abri a caixa.
Era um colar, lindo, lindo. Uma corrente dourada simples contornada por pedrinhas coloridas. Talvez semipreciosas. O dinheiro dele daria para algo assim – mas só se gasto completamente.
- Gostou?
- É lindo... Mas acho que significa que tu gastaste todo o teu dinheiro e que eu não vou te ver longe daqui tão cedo.
Ele viu.
- Venha cá. Vamos experimentar nesse pescoço de ganso.
- Abusado.
Aproximei-me e, com delicadeza, ele apanhou o colar com a mão esquerda e colocou-o em meu pescoço de frente para mim, olhando-me nos olhos.
- Isso é tudo o que sabes fazer? – perguntei, esperando mais alguma reação quando ele apenas ficou olhando, distraído e concentrado, para o meu pescoço. Então me encarou e indicou o braço direito.
- Acredito que você vá ter que se virar com o fecho.
Revirei os olhos.
- Claro. Tanta galanteria não ia dar em nada mesmo! Como sempre, eu faço o trabalho pesado.
- Eu ajudei com as frutas, não ajudei?
Eu sorri e abracei-o de novo.
- Obrigada, é lindo. MacGyver.
Ele afastou-me com uma mão e beijou-me o rosto. Ficamos num silêncio constrangido até que eu desse um jeito:
- Vamos subir. Teu ferimento deve estar doendo. Vou fazer uma massagem e então volto para arrumar tudo aqui embaixo, está bem?
- Certo. Ajuda aqui com essa perna.
Subimos e ele, antes que pudesse disfarçar, logo cedeu ao cansaço. Estava exausto, e desabou na cama.
- Seu ombro tá latejando, não é? – perguntei depois de trocar os curativos no tronco. Ele nem precisou responder. – Não falta muito pra tirar os pontos, talvez semana que vem. Agora, vamos dar um jeito nesse ombro.
Obediente e calado, ele sentou-se ereto na cama para que eu ajeitasse o travesseiro bem direitinho às suas costas. Com a intenção de massagear-lhe o ombro, ajudei-o a tirar a camisa sem mangas, passando-a pelo tórax enfaixado e pela tipoia. Ele fez uma careta.
- Tudo bem aí? – perguntei penteando o cabelo louro escuro para trás, até ver a testa.
- Tudo. E agora? – ele olhou-me.
- O quê?- sussurrei de volta, sem entender.
Ficamos em silêncio um instante.
- Bia...
- Hum?
- Eu... Nada.
Por impulso, beijei-o. Bem de leve. Só encostei meus lábios.
- Desculpa.
- Shh... Não se desculpe por uma coisa dessas.
- Tá bom.
- Mas por que fez isso?
- Juro, eu não sei.
- Talvez devêssemos tentar de novo. Talvez a gente descubra.
Então eu sorri.
- Prometo ter cuidado.
Encostei-me de leve em seu peito e beijei-o. Esbarrei algumas vezes em seu braço, me empolguei, mas ele suportou tudo estoicamente. E me abraçou como se eu fosse de vidro, como se quisesse tocar minha alma. Quando percebi, não havia mais qualquer tecido, nem um fio entre nós. Ele ofegou quando pressionei demais meu corpo contra seu tórax, então desgrudou os lábios dos meus, a mão boa subiu até meu cabelo e enrolou-se nos cachos.
- Desculpe... Eu te machuquei. Fiquei empolgada – ri sem jeito.
- Acho que não existe uma maneira simples de fazermos isso – ele puxou o ar.
Preocupada, comecei a desmontar de cima dele, para que pudesse respirar.
- Afinal de contas – comentei - não é o MacGyver.
Então ele riu, segurando o estômago para não desbocar de vez.
- Calma, calma... – puxou-me de volta. – Espere. Deixe-me pensar.
Ele então me olhou com um brilho travesso nos olhos. Como se tivesse uma ideia. E disse:
- Você sabe cavalgar?

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