domingo, 19 de dezembro de 2010

CASA, AMOR E GASOLINA (parte III)

A manhã acordou sincera. Sem nenhuma nuvem no céu, mas fria para os padrões de Macapá. Não chovia, mas o cheiro do orvalho estava ali, em algum lugar. Havia um homem com o dobro do meu peso sob mim e aquilo não me espantou.
- Meus pés amanheceram quentes, pela primeira vez – ele murmurou em meu ouvido.
Eu ronronei em resposta.
- Acho que te amo – ele beijou-me o cabelo. – Vá preparar o meu café.
Eu ri e rolei preguiçosamente para o lado.
- Ah, sim. Aí está a verdadeira intenção. Parece que ao menos o teu instinto masculino tu não esqueceste.
- Se é instinto, não dá para esquecer - ele beijou-me a nuca, sobre o colar delicado que ainda estava ali.
- O que acha de uma voltinha ali no deque, enquanto eu cozinho? Prometo subir rápido pra te chamar. E trago o teu bendito café.
- Tudo bem, eu vou – ele sorriu e custou a levantar-se, olhando-me esparramada na estreita cama. – Porque não quero nem ver sua cara quando lembrar a bagunça que está lá embaixo – ele fugiu para o deque.
Quando subi de novo com uma xícara na mão, encontrei-o debruçado, olhando para a rua molhada da noite. A vizinhança estava tranquila. Com exceção de um homem que passava àquela hora, tão cedo, bem em frente da casa com uma garrafa de coca-cola na mão, dessas de 2 litros, com um Papai Noel e enfeites natalinos ilustrando o rótulo, e cheia de um líquido amarelado e denso. Seu carro estava mais a frente, provavelmente no prego.
- O que estás vendo? – perguntei ao ver seu olhar fixo lá embaixo.
- Eu... Eu acho...
- Ei, o que foi? – olhei de novo para o homem que passava na rua, procurando o motivo para o espanto do meu desconhecido. – É só gasolina. Os carros precisam disso para sobreviver.
Ele riu. Quase.
- Eu sei. Lembro a parte técnica da coisa. Eu só não...
Franziu o cenho e eu me espantei. Ele começou a debruçar-se sobre si mesmo e oscilou, para frente e pra trás.
- Ai, não... Estás sentindo dor? – aquele homem nu no meu deque prestes a desmaiar com um estrondo e acordar toda a vizinhança não era nada bom. - Ei! Fala comigo! – eu bati em suas costas, longe do ombro fraturado.
- Beatriz...
Então ele riu e tentou segurar meu rosto com a mão. Estava estranhamente grogue, nauseado e esfuziante.
- Foi um acidente. Um acidente de carro. Eu não...
- Calma, senta aqui. Senta.
- Não quero sentar. Não posso sentar. Eu estava vindo de Santana. Passei pela penitenciária. Havia um tiroteio. Houve um tiroteio. Uma fuga. Estavam fugindo de lá. E eu passei bem em frente, bem na hora.
- Péssima hora, péssimo lugar.
- Shh... – ele calou-me com um beijo, aos risos. Seus olhos não estavam bem. Ele parecia zonzo. – Eu sei, eu sei, Bia. Eu sei. Eu não lembro bem quem eu sou, mas eu sei... Sei como aconteceu... Eu estava lá. Levei os tiros, no meio do fogo cruzado. Um carro, na correria, bateu na porta do passageiro do meu carro e me arrastou pela estrada. Talvez até o Cabralzinho, não sei. Demorou a chegar socorro. Não chegou ninguém. A polícia não parou. O carro, o outro carro que tinha me batido, entrou no meu pela porta do carona e esmagou meu braço direito. Eu me estraçalhei mais ainda até conseguir sair. Eu lembro o cheiro da gasolina. Podia explodir, então eu tinha que sair e me afastar o máximo que pudesse. Era um Honda Civic preto. Eu lembro.
- Calma...
- Eu saí do carro, me arrastei para longe. Perdi a consciência. Acordei. Me arrastei mais um pouco e então cheguei aqui. Na sua porta. Eu...
Foi nessa hora. Ele virou-se tanto para frente que oscilou de vez. Então seu corpo dobrou-se até que ele estava no ar, em queda livre até embaixo. Gritei e debrucei-me a tempo de ver o corpo nu passar arrastando pelo deque que se transformava na cobertura do alpendre e aí cair bem no jardim de frente para a entrada da casa. Estava morto.
Desatei desesperada a correr pela escada, envolta no lençol que apanhei às pressas, e deixei-me cair sobre ele lá fora. Chorei em suas costas. Estava de bruços. Tive que vira-lo, desesperada, para olhar seu rosto.
Ele abriu os olhos.
- Bia... – tocou-me a bochecha. Eu gritei engolfada em lágrimas, entre alívio e estupefação.
- Meu Deus! Meu Deus!
Ele abriu mais os olhos desfocados.
- Max. Max é meu nome. E eu não sou bandido... Sou só a porcaria de um engenheiro! - ele ri.
Então eu olhei fundo naqueles olhos cinza e ri também, e funguei, maldito susto!, e ri mais. E debrucei-me de vez sobre ele, enchi-o de beijos, e em meio ao riso, foi inevitável perguntar:
- Tu não morre nunca?


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