terça-feira, 24 de agosto de 2010

CONTO - Relato de um domingo

De fato, quando acordei e debrucei-me sobre aquele novo dia que nascia, eu não planejava matar minha filha. Isso não é algo que se planeje, que se almeje, ou espere... Você simplesmente acha que seus filhos viverão para sempre, não é? Mas esqueçam este prelúdio inútil. Isso tudo são apenas ruminações de um quase velho, deixemos de lado. Meu principal - na verdade único - objetivo é contar como se deram os fatos naquele dia.
Domingo. Acordei sem nenhuma disposição para sair de casa, mas minha esposa insistiu muito... E eu sempre fui um fraco, admito. Tamanha foi sua insistência, que quando me dei conta, eu já estava lá, sob o chuveiro, deixando a água escorrer e limpar o suor da noite, enquanto começavam a despertar lentamente as engrenagens do meu cérebro. Água fria. O banheiro, cheio de vapores. O cheiro dela ainda estava ali... Minha esposa. Na verdade, não a primeira, a segunda. Com quem tive filhos gêmeos.
Antes de prosseguir com a história, peço permissão para abrir um parêntese e escavacar o passado... Não, não reclamem. Relembrar rapidamente o passado agora é fundamental, porque só assim vocês entenderão os motivos pelos quais casei de novo, com esta mulher que acabo de mencionar, a que deixou vapores no banheiro e suor de sexo selvagem em meu corpo.
Bem, como disse, eu já fora casado antes, um casamento alegre e justo. Tive até uma filha, uma filha linda, com minha primeira mulher. A filha que matei... Quer dizer, que terminei de matar. Mas vamos com calma. Primeiro, deixem que eu me atenha a esse casamento original.
Vocês devem se perguntar neste momento o porquê de eu ter me separado de minha primeira esposa se era tão feliz. Só o que posso - o que consigo dizer - é que isso constitui uma questão delicada: Eu não sei bem como explicar o que me levou a rechaçá-la... Na realidade, eu não a afastei, ela é que se levantou e saiu, assim, sem mais nem menos, da minha vida, levando minha primeira filha. Analisando a situação hoje, acho que ao cabo da situação, só o que fiz foi dar-lhe o troco: Tirei a filha dela também, assim como ela fizera comigo em nossa separação.
Mas bem, que fôlego! Estou precipitando-me. Espere... Estou tentando explicar porque me separei da minha primeira esposa.
Confesso que antes, durante, e depois do casamento, eu ainda, e sempre, gostei dela. Mas ela achou que não dávamos mais certo, e eu achei que ela achava isso porque talvez fosse certinha demais... Calma demais... Quadrada demais... Pouco passional. Eu não.
Meu maior defeito? Sou ciumento. Agressivo. Isto é algo que tenho em comum com minha atual esposa. Então aquela nossa separação aconteceu por isso... Porque não nos conhecíamos mais. Não nos amávamos mais com o mesmo fervor. Talvez amar nem seja o verbo certo... Quem sabe, o verbo certo seja "querer". Eu ainda a queria, mas ela não.
Veio então minha segunda mulher. Eu já a conhecia desde antes, circulávamos entre os mesmos grupos de amigos, ela deixava ocasionais "recadinhos" em meu trabalho, em meus e-mails, os quais mais me pareciam grandes flertes. Então, um dia, eu aceitei. E correspondi. E, quando me dei conta, estava casado. Pela segunda vez.
Mas como disse, com o tempo, algo se desgastou... Acho que foi o encanto. Porque, passado o encanto, eu e ela descobrimo-nos muito parecidos. E é lei na física dos amantes que os semelhantes se repelem. Ou ao menos se machucam mutuamente. E foi o que aconteceu: Por sermos tão iguais, éramos tão divergentes em tudo o que dizíamos; em tudo o que gritávamos, em todos os lances que trocávamos. Ela, eu, nós éramos ciumentos. Ao extremo.
Ela nutria ciúmes pela filha que eu tanto amava e que tive primeiro, com a esposa original, mesmo que com ela eu tivesse gerado dois de uma vez só!
Ela tinha ciúme da minha bela amada garota porque dizia que ela parecia-se muito com a mãe... O que era verdade. E, em terceiro lugar, ela sentia ciúme da garota, a minha primogênita, porque era a constante lembrança de que antes de ela, existira outra mulher.
A qual secretamente - agora não mais - eu ainda queria. E, ah, esqueci de mencionar: Seu último ciúme era porque eu ainda tinha ciúme da primeira.
Digam então que eu não presto. Podem dizer. Eu não me importo. Qual de vocês presta? Eu não queria ter matado minha filha... Não.
Foi naquele domingo.
Aquele ciúme que minha segunda mulher tanto sentia aos poucos se converteu num ódio mudo, latente... Mas presente. E ela focou a emoção total e completamente na direção de minha filhinha, o meu tesouro, a minha bela criança. E foi nesse domingo que todo o ódio explodiu. Calma, vou chegar lá.
Depois que saí do banho, nós apressamo-nos, arrumamo-nos - eu, ela, e meus três filhos -, e saímos para passear de carro. Afinal, era domingo. Prometia ser um dia lindo, um dia bom... Mas minha esposa já estava um pouco irritada. Ela tinha perdido a paciência porque eu demorara demais no banheiro, porque não a ajudei a trocar fralda dos gêmeos, porque eu insistia em telefonar para minha primeira esposa toda manhã... e porque eu levava apenas minha filha mais velha no colo; os gêmeos eram por conta dela. Mas o que ela queria? Eu não tinha mais de dois braços para carregar todas aquelas sacolas e ainda três crianças!
Foi assim que começara o dia. Estressante.
Então saímos. Passeamos... Tudo mais ou menos bem. Comemos fora, brincamos no parque, trocamos alguns palavrões porque ela insistia em gritar comigo na frente dos outros, e nossas brigas sempre girando em torno da minha ex-esposa, e do meu dinheiro, porque, afinal, eu a sustentava agora, e com isso ela se sentia inútil, uma reles empregada.
Fiz de tudo para evitar mais discussões pelo resto do dia... Mas quando entramos outra vez no carro, com nossos gêmeos dormindo e minha filha acordada, a briga iminente e que eu evitara tanto eclodiu.
Minha filha, do banco de trás, entre as cadeirinhas dos bebês, ouviu tudo. Começamos a nos agredir, eu e minha esposa.
Ela então pediu lá de trás que eu parasse de gritar, assim como pediu à madrasta que parasse de dizer aquelas palavras feias... Foi quando aconteceu. Irritada, minha mulher acertou um soco no rosto de minha filha.
O horror começou.
Eu estava mudo e estupefato, contundido, queimando. Um buraco no peito, a falta de ar. Era a minha garotinha... Sendo surrada... A quem eu devia socorrer? Minha esposa raivosa ou à menina ferida?
Não socorri nenhuma das duas. Fiquei estático, e quase fechei os olhos. Mas acabei vendo tudo.
Ela sufocou a menina, e depois sacudiu, numa espécie de estrangulamento. A unha afiada arranhara a testa da minha garotinha. O soco tinha sido forte. Ficaria roxo. Ela então bateu no rosto da criança mais duas vezes, dois tapas, o barulho dos dedos contra a bochecha cor-de-rosa. E a menina desmaiou.
Minha esposa, ao se dar conta do que acabara de fazer, ficou muda. E aí rebentaram as lágrimas.
Um silêncio mortal.
Engoli em seco. Endireite-me no banco. Liguei o motor.
Dirigi como louco de volta para casa. Não, nada de hospitais. Se fôssemos até lá, o que poderiam pensar de nós? Eu tinha uma imagem a manter! Era um homem sério... Sério...
Quando chegamos à garagem do alto prédio, girei a chave, o carro parou; eu e ela ficamos ali, no escuro da garagem, pensando, apavorados. Por que minha filha não estava mais respirando? Por que estava sangrando tanto? Se por acaso ela estivesse viva, agora eu sabia, sentia nas entranhas, ela logo morreria... Não levaria muito tempo... Então o que fiz?
Enquanto minha esposa soluçava desesperada pelo que cometera, prestes a inaugurar em si uma crise de histeria, eu a sacudi até que se calasse. Mandei que respirasse. Mandei que me ajudasse. Eu tinha um plano.
Ela matara minha filha, mas... Não poderia levar a culpa. Não. Aquilo iria manchar, levando nós dois juntos até a mais profunda lama. Era melhor forjar uma explicação. Depois eu tentaria não arcar com as consequências.
Decidido, ainda com as lágrimas a escorrerem por meu rosto, tive de pensar rápido, e fiz. Tirei minha filha do carro, o corpinho estava quente, sangrando, molenga. Assustador.
Ela gemeu. Ainda estava viva!
Mas eu sabia que restava pouco tempo. Aquele suspiro cansado... Aquela falta de ar... Já era sim a morte nela. Fechei os olhos e subi até o apartamento pelas escadas de emergência, enquanto minha esposa trazia os gêmeos profundamente adormecidos pelo elevador.
Tudo não levou mais de treze minutos. Quando chegamos ao apartamento, ainda em estado de total inconsciência sobre o que acontecia realmente, deixei minha filha inerte sobre a cama, em seu quarto de paredes brilhantes. Então, enquanto minha esposa tentava não gritar desesperada, eu encontrei uma tesoura grande e prateada, um pouco enferrujada nas articulações, dentro da gaveta do banheiro.
Fui até a janela, no quarto. Com cuidado, para não pisar no corpinho imóvel sobre a cama, subi no colchão, pelas beiradas, quase escorreguei sobre meus chinelos, debrucei-me sobre a tela de proteção com sofreguidão, mas com a precisão de um maníaco. E cortei. Um círculo imperfeito, um buraco na tela da janela.
Lancei a tesoura na direção de minha esposa, que agora me observava da porta do quarto. Acabara de deixar os gêmeos nos berços. Ela queria ver o que eu estava fazendo. Estava me livrando da burrada que ela arrumara!
Ela agarrou a tesoura, saiu para guardá-la em algum canto. Ela também não queria ver o que eu faria em seguida... Olhei então para o chão, e notei as gotas de sangue, feito um caminho de migalhas de pão, como na história de João e Maria. Ia desde a porta do apartamento até o quarto, e aos pés cama, onde eu estava agora.
Fechei os olhos e voltei-me para a janela. Agachei-me, peguei minha filha no colo, pelo que seria a última vez, e de alguma forma eu sabia. Então, o próximo passo foi... Jogá-la janela a fora.
Não a vi caindo. Virei o rosto. Nojo de mim, nojo de tudo, nojo da vida, nojo daquilo que eu me tornara. Mas estava feito. Não a vi estendida no gramado lá embaixo. Não quis olhar.
É claro que eu contaria uma outra história quando a polícia, ou os bombeiros, ou o resgate chegassem, mas até então eu teria tempo para pensar em algo plausível.
Era como se eu estivesse brincando num jogo de tabuleiro sem fim, e eu era a caça.
Mal podia imaginar o que só descobri agora... Que seria caçado eternamente... Pela minha consciência.
Desci da cama. Respirei fundo. Esfreguei as mãos no rosto. Minha esposa passional, bem articulada e briguenta estava pela primeira vez muda, na sala, sentada e encolhida. Os dedos tremendo. Ela já se dera conta do que fora feito? Do que fez? Do que fizéramos? Eu não podia dizer. Porque nunca entendi essa mulher...
Durante todo o tempo, enquanto fazia o trabalho sujo, pensei, é claro, em livrar minha pele, mas pensei também na primeira. Minha primeira esposa.
O que ela pensaria? A questão era ela. Sempre fora ela. Agora eu sabia que meu coração era um poço fundo e escuro, de paredes pegajosas, por onde escorria a eterna bile. Meu coração não tinha alma, era um coração oco. Passional, irracional, mas ao mesmo tempo oco. E agora, eu acabara de descobrir também, um coração capaz de criar um álibi, justificar um crime... Coração contraditório. Ora, de que importava a droga de um coração?! Eu tinha construído uma vida baseado no engano de ter-me casado de novo. E agora essa vida desabava, caía por terra.
Melhor. Eu não aguentava mais. Estava saturado. Fim.
Fui até a sala, perto dela, no sofá, e liguei para o meu pai.
Assim terminou aquele domingo, que foi o mais surreal de todos... E a vida real, brutal, grotesca, começou.

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