terça-feira, 24 de agosto de 2010

CONTO - Aqueles Cachos Azuis...

Meu primeiro amor foi uma prostituta. Ela era linda.
Havia um banco na esquina da minha casa, um banco amarelo de madeira, que repousava sob a sombra tranquila de uma árvore a qual eu nunca descobri o nome. Em algumas tardes, o vento passava por ali, nadava em volta, e agitava as folhinhas tão lentamente, que era como se eu pudesse parar o tempo... Como se tudo estivesse suspenso... Como se o céu assobiasse um dramazinho tranquilo...
Passei anos da minha infância observando aquele banco. Pintado primeiramente de vermelho-sangue, logo em seguida daquele tom forte e vitelino, a tinta começava então a descascar, e com o tempo as lascas de madeira foram sendo arrancadas. Por nádegas e nádegas que se sentavam ali tarde após tarde, bem debaixo da minha janela...
E do alto eu observava tal esquina. O vidro me protegia do mundo lá fora, eu tinha tanto medo, era um mundo tão grande, e acho que nunca cresci. A culpa foi do vidro. Ou será que foi minha? Prefiro não pensar mais nisso hoje. Tantas coisas ficaram para trás...
Voltemos àquelas tardes lindas e vazias. Antigamente, eu já era medroso. Tão medroso e assustado quanto sou hoje. Mas a diferença é que, antes, eu ainda me atrevia a arriscar. Uma vez. Eu queria realizar todos os meus sonhos mais pueris num dia só, num único dia, num gole só, numa só machadada... Pobre de mim! Achava que podia ser feliz simplesmente sentando num banco velho de esquina.
E assim foi. Numa tarde, recebi minha permissão, e enfim pude descer... Fui ver o pedaço de mundo lá fora. E eu mesmo achava que tinha vivido toda a minha vida em função daquele instante de emoção e fuga... Que tolice mais doce!
Foi numa tarde razoavelmente quente. Já era adolescente. Resolvi descer as escadas do prédio, e dessa vez, ao invés de apenas olhar de cima, sentar minhas próprias nádegas no banco de praça que povoara todos os quadros da minha infância...
Foi simples. Desci.
Eu estava atravessando a rua quando reparei na noite que já se aproximava, o cheiro de rio vindo de sei lá onde, e as promessas escritas em cada pedaço de calçada. Sentei no banco e esperei minha vida começar a acontecer. Demorou uns instantes... E nada. Será que era só isso? Pela primeira vez eu queria desvendar o mundo, começando pela esquina, e quando enfim enfrentava o magnânimo banco amarelo, nada me acontecia. Era mesmo só aquilo? Resolvi esperar.
Eu já estava sentado havia mais ou menos duas horas, tão estoicamente - disposição essa que hoje me falta -, quando, cruzando a rua no outro canto, ela apareceu.
Puxa, era linda. Tão linda que me fez sentir falta de ar. Eu ainda não sabia que se apaixonar era uma tremenda besteira. E muito menos sabia que podia haver gente tão bonita quanto aquela mulher... Enfim. Enfim. Sim, livre. Senti-me livre.
De fato, eu nunca tinha admirado de verdade uma mulher, nunca tinha reconhecido no outro sexo aquele elemento chave que faz você querer lamber seu próprio cabelo, ajeitar as costas, meter as mãos nos bolsos, lutar para não corar.
Bem, eu morei toda a vida com meu pai, era órfão de mãe, e o meu velho, apesar de professor, nunca havia dito qualquer coisa sobre aquela pressão sinistra que começava a formigar no baixo-ventre. Meu pai foi tão medroso quanto eu... Sorte minha não ter perpetuado nossa espécie.
Mas eu prefiro aquela tarde. Não quero refletir sobre o que sou, ou o que me tornei. Quero é viver e reviver esse momento já longínquo, lentamente, eternamente, porque só ali fui feliz, tão feliz, a ponto de estourar o peito! E é por isso que o desnudo tão descaradamente agora. Temo contar tudo. Mas sinto que é necessário, antes que a lembrança se apague, antes que esses meus dias cinzentos se tornem tão pretos que eu não possa mais enxergar nada...
Vá lá, eu estava sentado no banco, e ela apareceu, atravessando a rua. Seus cabelos eram tão negros, tão negros, que sob a luz morna daquela tarde, eles pareciam refulgir um brilho intenso e quase azul, cor de piche, de asfalto, cor de corvo. Cabelos tão lindos e longos e cacheados e densos que eu me perguntei como um homem poderia viver tanto tempo sem se enroscar naqueles fios... Sem conhecer aquela sensação que eu experimentava agora.
Ela ainda não me via. Veio se aproximando de mim, tranquila, aqueles quadris que se mexiam redondamente, um rosto oval descortinado, que me fazia pensar em sonhos... Eu não tinha consciência ainda, naquele tempo, que em minha cara se estampava uma expressão totalmente abobalhada. Eu estava apaixonado. Apaixonado por aquela cabeleira ambulante de cachos preto-azuis.
Ela aproximou-se mais, veio andando. Então nossos olhos se encontraram. Eu estava muito nervoso. Limpei as mãos suadas no jeans velho. Algo aconteceu, ela percebeu, houve aquele momento tácito e agudo em que dois corpos se encontram se entendem e se falam sem palavras. Ela sorriu. Sorriu para mim? Meu Senhor, ela sorrira para mim! E então veio vindo... Veio vindo... E eu me afogando naqueles dois poços escuros que eram seus olhos... Lembro daquilo tão bem, da sensação de me engolfar, que agora até me arrepio. E são meras lembranças, veja só! E foi tão bom! Eu não tive medo. Pelo menos não muito. Quando ela chegou suficientemente perto para roçar os joelhos nos meus, ela de pé e eu sentado, de alguma forma intuí que ela faria por mim o desconhecido.
- São 50 paus - palavras vulgares numa voz inumanamente meiga.
Traguei saliva.
- O... O quê?
- Cinquenta. O programa.
Ela estava falando grego.
Eu era inócuo o suficiente para não compreender o motivo pelo qual uma mulher tão linda desejaria, precisaria – ou julgaria precisar –, vender a si própria.
Mas, de algum modo, saquei que estávamos falando de coisas proibidas, liberdades não professáveis. Perfeito. Era o que eu buscava, não? Um beijo por uma nota. Tão tentador...
- Eu não tenho nada - respondi gaguejante e ridiculamente indefeso.
Ela sorriu. E daí até o próximo ato eu não consigo lembrar nada, ou dizer como foi que paramos dentro de um quarto à meia luz cor-de-rosa num motel.
Ela usava uma blusinha cortada com a cara estampada do Kurt Cobain, mangas que deviam estar ali em algum lugar, mas não estavam. Umbigo à mostra. E somente eu arrepiado? Que momento mais louco é esse, quando um garoto de dezessete anos entende que uma mulher é muito mais que braços e cotovelos. É umbigos e seios também.
Eu respirava assustado. O ar quente dentro daquele quarto era sufocante, e já derrapara a noite lá fora.
No cubículo, o abajur estava envolto num lenço que tingia toda a habitação, a chuva caía e escorregava pelas janelas como as preces surdas que o meu sangue grunhia, explodindo em mil pedacinhos de glória dentro do meu coração.
Procurei a vida inteira, anos depois, por essa sensação. Nunca mais se repetiu... Ah, a nossa vida... Que foi tão linda e não volta nunca.
Ela murmurou algumas palavras. Mandou-me relaxar. Eu fingi que obedecia. Com um dedo de unha longa, pintada de rosa no mesmo tom em que mergulhava o quarto, ela me empurrou de leve em direção à cama. Uma cama redonda, coisa que eu nunca vira. Caí sem ruído contra as almofadas, pedaços cortados em todos os formatos possíveis.
O motel era barato, qualquer coisa classificada como "beira de rua". Havia um cheiro forte de naftalina e mofo nos lençóis, e conforme a chuva aumentava e o vento rugia loucamente lá fora, o vidro da janela tremia e debatia-se, gelado como meus dedos dos pés.
Ela agachou-se perto de mim. Eu observava tudo. Tirou-me os tênis, as meias. Deixou-me sem camisa. Lambeu meu pescoço. Riu um riso alto, gritou um grito baixo, coisas de mulher, sempre mulher... E aquela voz me mandava respirar e ser corajoso. Prometia-me o mundo e eu acreditei.
Foi a primeira e única vez que provei um bocadinho de amor, por mais torto que fosse. Afinal, ela aceitara dar-se a mim sem que eu oferecesse nada em troca. Aquilo devia significar alguma coisa... Devia... Talvez... Talvez. Um talvez de menino.
Uma música. Ao fundo, o jazz. Eu ainda não sabia que aquilo era jazz, mas com o tempo descobri. O ruído macio vinha de um aparelho sobre o criado-mudo, e ela havia engendrado toda essa sedução sem que eu me desse conta. Meu coração rugia. O tempo galopava com uma navalha na mão, deixando muito claro que momentos assim não duravam para sempre. Mas eu queria. Quem sabe?...
Ninguém nunca sabe... Que vai viver um momento inesquecível enquanto o está vivendo.
Aproximou-se de mim outra vez. Seus olhos, fixos nos meus. Ela tinha um corpo em formato de laço. Os olhos, duas bolas de fogo negro. Contra a luz difusa e fraquinha do quarto, seus cachos enroscados pela cintura brilhavam lugubremente, como se naquelas ondas se ocultassem segredos marinhos. Ela cheirava a um cheiro gostoso. Mais tarde descobri que nem todas seriam assim. Tinha uns lábios do tamanho de um chumaço de algodão, e eu suspeitava que fossem macios também. Ela sorria sempre. Tirou a camiseta de banda, essa que fora estilizada até reduzir-se a um quase retalho. Uma chama propagou-se dentro de mim. Senti meus braços e pernas amolecerem, meu abdômen virou chumbo, minha cabeça, fumaça. O chão inteiro sumiu, não havia mais teto. Estávamos na chuva, no vácuo, no pôr-do-sol, em qualquer lugar. Mas havia uns brilhozinhos de estrelas vagando ao redor dos meus olhos, e eu tinha certeza de que em breve eu explodiria junto àquele céu.
Sutiã. Pela primeira vez deparei-me com um. Naquela época, não era comum que mulheres quase nuas aparecessem, na vida real ou na TV, então para mim era tudo novidade. Ela usava um sutiã de renda, uns peitos não muito grandes, gigantes anões, eu diria. E falou para mim:
- Vamos voar? - riu. – Que tal?
Só pude concordar, boca meio aberta, dentes batendo uns nos outros, olhos vidrados.
Naquela noite eu voei.
Toquei, sim, estrelas, e mais, muito mais. Desvendei todos os mistérios, matei todos os monstros, estraçalhei todas as dúvidas; encontrei um lugar em mim onde havia muito mais do que a obviedade do medo gelado que me fora legado.
Ela me olhou nos olhos mais uma vez, uma última vez, antes de fechá-los, e pairar de leve acima do meu corpo com aquela pele quente e dourada.
Ela tirou a calça jeans.
Uma única noite.
E eu nunca mais fui tão feliz...

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