Delícias infinitas nos são proporcionadas quando estamos ali ranzinzas, azedos à espera do atendimento, como que para compensar a demora paradoxal dos fast food.
Dois Sócrates na fila:
- ... É louco, cara! Você faz uma descoberta. E aí vai percebendo ao longo do seu cotidiano, nos dias seguintes, imediatamente após o descoberto, milhares de referências àquilo que antes você não conhecia. Filmes, músicas, hiperlinks, notas de rodapé nos livros... Uma loucura...
- Sei como é. Então a gente para pra pensar e se pergunta quantas coisas mais tem deixado escapar... Vivemos essa vida de ignorância plácida, ridícula...
- Mas aí, superado o desespero inicial, vem essa mesma ignorância, com aquela vozinha doce, confortadora, e sussurra no seu ouvido... "Calma... Você viveu até aqui sem saber de nada... Não é agora que vai morrer, não é mesmo?"
- Ha, ha, ha! Essa ignorância é mesmo uma quenga!
- É...
- Interessante mesmo é aproveitar o caminho natural das descobertas, não é? Não tem jeito. Deixa rolar. Não vou sair à caça. Se algo escapar à percepção, nem saberemos. Afinal, não sabemos mesmo!
- Verdade... E por mais que eu venha a saber de algo mais, permaneço sem saber de todo o resto. O fato de eu começar a conhecer só me mostra como sou ignorante!
- Saber que nada se sabe é uma bênção. Não corro o risco de achar que já sei de tudo. Essas descobertas fortuitas me mantêm ligadão. E aí, vai pegar o Big Mac de sempre?
- Hoje eu vou de Big Tasty.
domingo, 25 de novembro de 2012
FALANDO COM DEUS
Senhor, cansei de tentar parecer inteligente.
Faz de mim logo um pitéu e me poupa desses esforços vãos...
Faz de mim logo um pitéu e me poupa desses esforços vãos...
sábado, 17 de novembro de 2012
POMBOS GEMEDORES
Não sei se no pesadelo urbano existe som mais melancólico ou sinistro
do que o arrulhar noturno de um pombo à janela.
Penso que os pombos são corujas frustradas.
do que o arrulhar noturno de um pombo à janela.
Penso que os pombos são corujas frustradas.
segunda-feira, 29 de outubro de 2012
DESCREVER O QUE NÃO SE SENTE
A escrita nos abre milhões de janelas que só mesmo a imaginação pode construir. Uma dessas janelas abertas chama-se "experiência". Porque experiência não diz respeito necessariamente àquilo que se experimentou em vivência - ou seja, o que foi táctil, o que foi palpável, filtrado pelos sentidos mais físicos -, mas sim diz respeito a tudo aquilo que se pode degustar em espírito, com a mente. A palavra então traz esse mundo de areia construído sobre rochas de vento para a plataforma de papel - ou eletrônica, ou calçada, ou troncosa, o que seja!
Experimentar não é viver no corpo somente, mas também vivenciar dentro de um processo de pensamento completo, e tornar ainda mais sólido através da palavra. Descrever o que não se sente, descrever o frêmito, o arrepio, o toque. Dedos invisíveis que deslizam pela derme como um trem sem destino e sem pressa. Olhos que rolam preguiçosamente e com carinho sobre a pele que cheira a Nivea. Sorrisos que se insinuam porque o toque é bom. Dedos que, após o caminho, se entrelaçam. E os pelos dos braços ouriçados, e os pelos das pernas tolhidos pelo jeans. A mão agora atada em outra que sobe novamente pelo ombro macio e alcança a face que se cora, coraliza. E pula outra vez a bochecha num sorriso desses meigos de fazer o coração gelar e ferver ao mesmo tempo. E o sorriso de resposta, dono do toque-ouriço, tem a barba por fazer e espeta, mas é delícia. Roça no pescoço, dizer cangote é mais gostoso, aconchega-se naquele canto que a gente chama "curva dos enamorados", a pele macia, o vão entre nuca e clavícula, e cheira bom.
Chega mais perto, olhos nos olhos, eles se têm capturados. Quem dirá daqui a um ano, dois, dez...? Mas, que importa isso agora? Olha só como se olham, olhos nos olhos, e o acanhamento de finalmente se flagrar assim tão apaixonado, mas tão, que o termo perde o sentido, fica vagando desconexo entre duas almas e dois corpos que se querem bem mais do que precisam de espaço, tempo, ar. E, achegados, assim, de mansinho, vagarzinho, esse olhos nos olhos e dedos nos dedos, forte, porque o compromisso agora se mostrou em toda a sua proporção monumental, são as barrigas que se chocam, as respirações no compasso do descompasso, vem de novo, toma os lábios, e estes se abrem, e se achegam também.
E posso não estar vendo ou provando a cena, mas sei que acontece, porque se materializa em minha mente, escorre por essas paredes tão vazias, tão cheias de tudo, e então vêm pelo córrego direito, fazem a curva ao pé do leito miocárdio o outro extremo esquerdo, então desaguam pela mão destra, fazem seu caminho rumo a um texto tão bem, tão sem razão, que sua única certeza é ser brutalmente real, brutalmente sentido, mesmo não sendo.
Experimentar não é viver no corpo somente, mas também vivenciar dentro de um processo de pensamento completo, e tornar ainda mais sólido através da palavra. Descrever o que não se sente, descrever o frêmito, o arrepio, o toque. Dedos invisíveis que deslizam pela derme como um trem sem destino e sem pressa. Olhos que rolam preguiçosamente e com carinho sobre a pele que cheira a Nivea. Sorrisos que se insinuam porque o toque é bom. Dedos que, após o caminho, se entrelaçam. E os pelos dos braços ouriçados, e os pelos das pernas tolhidos pelo jeans. A mão agora atada em outra que sobe novamente pelo ombro macio e alcança a face que se cora, coraliza. E pula outra vez a bochecha num sorriso desses meigos de fazer o coração gelar e ferver ao mesmo tempo. E o sorriso de resposta, dono do toque-ouriço, tem a barba por fazer e espeta, mas é delícia. Roça no pescoço, dizer cangote é mais gostoso, aconchega-se naquele canto que a gente chama "curva dos enamorados", a pele macia, o vão entre nuca e clavícula, e cheira bom.
Chega mais perto, olhos nos olhos, eles se têm capturados. Quem dirá daqui a um ano, dois, dez...? Mas, que importa isso agora? Olha só como se olham, olhos nos olhos, e o acanhamento de finalmente se flagrar assim tão apaixonado, mas tão, que o termo perde o sentido, fica vagando desconexo entre duas almas e dois corpos que se querem bem mais do que precisam de espaço, tempo, ar. E, achegados, assim, de mansinho, vagarzinho, esse olhos nos olhos e dedos nos dedos, forte, porque o compromisso agora se mostrou em toda a sua proporção monumental, são as barrigas que se chocam, as respirações no compasso do descompasso, vem de novo, toma os lábios, e estes se abrem, e se achegam também.
E posso não estar vendo ou provando a cena, mas sei que acontece, porque se materializa em minha mente, escorre por essas paredes tão vazias, tão cheias de tudo, e então vêm pelo córrego direito, fazem a curva ao pé do leito miocárdio o outro extremo esquerdo, então desaguam pela mão destra, fazem seu caminho rumo a um texto tão bem, tão sem razão, que sua única certeza é ser brutalmente real, brutalmente sentido, mesmo não sendo.
quarta-feira, 24 de outubro de 2012
FALSA CONFISSÃO
Tempo em que não se pode chorar. A garganta seca, os olhos ardem, mas lágrima alguma cai. A água que escorre é seca e feita de vento. Derrama-se dos olhos unicamente a aridez.
Tempo em que não se pode confiar. Confia-se, desconfiando. E a confiança, quando vem ou vai sincera, é apunhalada, aqui ou lá. Tempo em que fazem mal querendo fazer o bem. E o bem tornou-se uma abstração forçosa de quem teima em crer que há razão em fazer o que faz.
Tempo em que os estômagos se contraem, e o peito dispara, cavalga, explode. Mas não há emoção. É só essa secura ardorosa que oprime e impede, ao mesmo tempo, de sentir, enquanto se sente tudo o que não pode ser exprimido.
Tempo em que as palavras rasgam almas, e o silêncio também. Tempo em que essas palavras ferem até sem querer. Elas ferem e só. Tempo em que os gritos são sempre gritos, até quando sussurrados. Mas já não dizem nada. A dor não se derrama. Junto com a dor, a própria punição: Permanece aprisionada no recipiente invisível do ser, indecifrável, inviolável.
Tempo em que se tenta falar sobre algo, se tenta clamar, implorar, confessar... E as intenções todas se fazem vazias. As confissões mais tolas, as mais sinceras, as mais rudes, as mais graves e sérias... São todas invólucros vazios, que encerram somente o não ser nada, o direito a nada, nada além da própria miséria interna.
Há somente a vontade. Mas não conta. As intenções são todas mortas.
Tempo em que não se pode confiar. Confia-se, desconfiando. E a confiança, quando vem ou vai sincera, é apunhalada, aqui ou lá. Tempo em que fazem mal querendo fazer o bem. E o bem tornou-se uma abstração forçosa de quem teima em crer que há razão em fazer o que faz.
Tempo em que os estômagos se contraem, e o peito dispara, cavalga, explode. Mas não há emoção. É só essa secura ardorosa que oprime e impede, ao mesmo tempo, de sentir, enquanto se sente tudo o que não pode ser exprimido.
Tempo em que as palavras rasgam almas, e o silêncio também. Tempo em que essas palavras ferem até sem querer. Elas ferem e só. Tempo em que os gritos são sempre gritos, até quando sussurrados. Mas já não dizem nada. A dor não se derrama. Junto com a dor, a própria punição: Permanece aprisionada no recipiente invisível do ser, indecifrável, inviolável.
Tempo em que se tenta falar sobre algo, se tenta clamar, implorar, confessar... E as intenções todas se fazem vazias. As confissões mais tolas, as mais sinceras, as mais rudes, as mais graves e sérias... São todas invólucros vazios, que encerram somente o não ser nada, o direito a nada, nada além da própria miséria interna.
Há somente a vontade. Mas não conta. As intenções são todas mortas.
domingo, 7 de outubro de 2012
ESCRITA
Muitas vezes escrevo para cumprir tabela. Estou submersa na letargia, vaziedade ou insensibilidade do dia a dia, então grafo como um marido que só comparece para tentar aquele primogênito que nunca vem. E prossigo assim, inerte. Verbo, adverbo, adjetivo, preposiciono, conjugo, julgo, mas não transcendo.
Essa pacatez que rege a vida dos escritores fleumáticos acaba por acomodá-los também numa espécie de arrogância contente, contentada. Pensa que escreve bem, que o ofício é aquilo ali mesmo, acostuma-se à sua própria mediocridade e para de exigir mais e melhor de si, agarrando-se à falsa e tragicômica certeza de que repousa placidamente junto a grandes cânones literários. Está estático, deixou de ser extático.
Mas então vem. Vem o terremoto, a retomada do primeiro amor, o frenesi, aquele texto alheio, de outrem, impactante, atrevido, não anunciado (apesar de ser magnético desde o título). Num assalto, esse tal texto, qualquer que seja, de simplicidade, qualidade e brilhantismo invejáveis, nocauteia o escritor preguiçoso e faz com que este se veja diante da grande verdade: Não está bom. Nunca estará bom. Nunca, nunca estará bom o suficiente para se acomodar.
É paradoxal, mas essencialmente válido: Você nunca escreverá tão bem quanto poderia chegar um dia a escrever. Todavia, a ideia ajuda a impeli-lo rumo a uma busca constante, irrefreável. Não se pode deixar que a preguiça cale o talento, o empenho, a inclinação apaixonada, o polimento, o afinco.
Tem que ter suor. Exercitar o carpo. Pensar, pensar, pensar. Absorver, sorver, sorver. Remoer. Cuspir. Ler, ler, e ler. Mas não simplesmente ler... Beber do outro. Alimentar-se das possibilidades. Ler o texto estrangeiro e tumultuar-se, perguntar-se: "Como eu poderia escrever isto aqui tão bem quanto foi escrito? Eu poderia mesmo escrever assim um dia? Consigo? Puta louco, não, el(a)e é um gênio!"... E que não haja também acanhamento em reconhecer a genialidade alheia. Crescemos a cada vez que percebemos a nossa própria fragilidade, pequenez, significância titubeante. E acho que isso não se aplica somente ao mundo literário. Para todo crescer, há que se tornar pequeno.
Essa pacatez que rege a vida dos escritores fleumáticos acaba por acomodá-los também numa espécie de arrogância contente, contentada. Pensa que escreve bem, que o ofício é aquilo ali mesmo, acostuma-se à sua própria mediocridade e para de exigir mais e melhor de si, agarrando-se à falsa e tragicômica certeza de que repousa placidamente junto a grandes cânones literários. Está estático, deixou de ser extático.
Mas então vem. Vem o terremoto, a retomada do primeiro amor, o frenesi, aquele texto alheio, de outrem, impactante, atrevido, não anunciado (apesar de ser magnético desde o título). Num assalto, esse tal texto, qualquer que seja, de simplicidade, qualidade e brilhantismo invejáveis, nocauteia o escritor preguiçoso e faz com que este se veja diante da grande verdade: Não está bom. Nunca estará bom. Nunca, nunca estará bom o suficiente para se acomodar.
É paradoxal, mas essencialmente válido: Você nunca escreverá tão bem quanto poderia chegar um dia a escrever. Todavia, a ideia ajuda a impeli-lo rumo a uma busca constante, irrefreável. Não se pode deixar que a preguiça cale o talento, o empenho, a inclinação apaixonada, o polimento, o afinco.
Tem que ter suor. Exercitar o carpo. Pensar, pensar, pensar. Absorver, sorver, sorver. Remoer. Cuspir. Ler, ler, e ler. Mas não simplesmente ler... Beber do outro. Alimentar-se das possibilidades. Ler o texto estrangeiro e tumultuar-se, perguntar-se: "Como eu poderia escrever isto aqui tão bem quanto foi escrito? Eu poderia mesmo escrever assim um dia? Consigo? Puta louco, não, el(a)e é um gênio!"... E que não haja também acanhamento em reconhecer a genialidade alheia. Crescemos a cada vez que percebemos a nossa própria fragilidade, pequenez, significância titubeante. E acho que isso não se aplica somente ao mundo literário. Para todo crescer, há que se tornar pequeno.
sexta-feira, 20 de julho de 2012
QUEM SOU EU
Eu sou
um sinal na bochecha.
Eu sou
uma dentição mal-feita.
Eu sou
uma cabeleira rebelde.
Eu sou
pele peluda.
Eu sou
resquícios de textos.
Eu sou
um nariz de tubérculo.
Eu sou
dois olhos manchados.
Eu sou
manto estriado.
Eu sou
pés chatos.
Eu sou
o que fazes de mim.
Quando, na verdade,
não sou.
um sinal na bochecha.
Eu sou
uma dentição mal-feita.
Eu sou
uma cabeleira rebelde.
Eu sou
pele peluda.
Eu sou
resquícios de textos.
Eu sou
um nariz de tubérculo.
Eu sou
dois olhos manchados.
Eu sou
manto estriado.
Eu sou
pés chatos.
Eu sou
o que fazes de mim.
Quando, na verdade,
não sou.
quinta-feira, 14 de junho de 2012
MAIORIDADE
Eis que chegou o meu aniversário, e praticamente já se foi por completo. Dia 14 de junho, 18 anos.
A maioridade pouco significa para mim, na verdade. Muito provavelmente só terei legitimado a maioria de meus direitos quando estiver para lá dos 30. No entanto, dezoito anos de vida serviram-me para ensinar certas coisas consideráveis. Segue a lista de exemplos:
"Nunca tenha apenas um único fone de ouvido. Você certamente viverá perdendo-o com mais frequência do que imagina"
"Nunca minta para a sua mãe. Ela sempre saberá a verdade"
"Nunca deixe seus pertences eletrônicos no chão. Eles podem ser pisados. E o desleixo nunca mais teve o mesmo charme depois que invetaram as telas de cristal líquido"
"Nunca acredite no que dizem durante o ensino médio. A liberdade universitária é uma ilusão"
"Nunca crie um blog. Se criar, não ponha expectativas sobre ele. Será apenas um lugar no qual você desvendará grandes mistérios da natureza humana sem que ninguém jamais leia"
... Brincadeirinha. Bom, até que é verdade, mas o ponto não é esse, com os exemplos expostos aí em cima. O ponto é que, por mais que eu tenha dito ao longo de todo este dia coisas do tipo "sim, é 18, mas me sinto como se fossem 15", e tenha escutado muitas coisas parecidas a "18 já?! Mas nem parece!...", sinto que mudei um tantinho. Não sei explicar... É essa coisa de ter consciência, ainda que não muito clara, de que você acabou de vencer uma etapa, conquistou outra, novos degraus se elevam a partir deste ponto. De certa forma, pressente-se o marco. É um marco. Sei que já não serei a mesma que fui até aqui, mas permaneço sendo eu mesma. Espero que bem melhor.
Agradeço ao SENHOR por tudo. Como o garçom na churrascaria disse: "Mais um ano de vida nos caminhos do SENHOR é sempre só bênção!". AMÉM.
A maioridade pouco significa para mim, na verdade. Muito provavelmente só terei legitimado a maioria de meus direitos quando estiver para lá dos 30. No entanto, dezoito anos de vida serviram-me para ensinar certas coisas consideráveis. Segue a lista de exemplos:
"Nunca tenha apenas um único fone de ouvido. Você certamente viverá perdendo-o com mais frequência do que imagina"
"Nunca minta para a sua mãe. Ela sempre saberá a verdade"
"Nunca deixe seus pertences eletrônicos no chão. Eles podem ser pisados. E o desleixo nunca mais teve o mesmo charme depois que invetaram as telas de cristal líquido"
"Nunca acredite no que dizem durante o ensino médio. A liberdade universitária é uma ilusão"
"Nunca crie um blog. Se criar, não ponha expectativas sobre ele. Será apenas um lugar no qual você desvendará grandes mistérios da natureza humana sem que ninguém jamais leia"
... Brincadeirinha. Bom, até que é verdade, mas o ponto não é esse, com os exemplos expostos aí em cima. O ponto é que, por mais que eu tenha dito ao longo de todo este dia coisas do tipo "sim, é 18, mas me sinto como se fossem 15", e tenha escutado muitas coisas parecidas a "18 já?! Mas nem parece!...", sinto que mudei um tantinho. Não sei explicar... É essa coisa de ter consciência, ainda que não muito clara, de que você acabou de vencer uma etapa, conquistou outra, novos degraus se elevam a partir deste ponto. De certa forma, pressente-se o marco. É um marco. Sei que já não serei a mesma que fui até aqui, mas permaneço sendo eu mesma. Espero que bem melhor.
Agradeço ao SENHOR por tudo. Como o garçom na churrascaria disse: "Mais um ano de vida nos caminhos do SENHOR é sempre só bênção!". AMÉM.
sábado, 9 de junho de 2012
NÃO SE DESAMA DANDO UM MERO TCHAU
Porque deixar de amar não é normal...
A sabedoria musical é incrível. Ensinando um mundo com apenas um verso.
Muitas vezes, independentemente de qual canção se trate, você de repente se depara com uma verdadeira pérola da essência e experiência humana...
Penso, na verdade não só eu, afinal, é um fato conhecido por pessoas sábias e conscientes, que o amor não é essa coisa despretensiosa e à-toa que muita gente sente, julgando ser válido, como se se pudesse amar movido por forças estranhas e oscilantes, morríveis a qualquer momento. O amor não é isso, é claro que não. Não assim - descartável. Coisa aleatória e descartável. O amor não. E, de fato, deixar de amar não é normal. Porque se você escolhe amar alguém, a tendência é que seja uma atitude definitiva, não? É um paradoxo pensar num amor que acaba, que se extingue. Estamos falando de amor como tem que ser. Dificilmente alcançado, mas possível. Porque pessoas capazes de entendê-lo existem sim.
Enfim, a infinitude do amor já está contida nele mesmo. É idiotizante supor que o "produto" vem com prazo de validade. Mais triste ainda é comprá-lo vencido. A mercadoria então era falsa.
O ponto é: admirável essa sapiência musical que paira ao redor de nós e na qual poucas vezes reparamos. Como uma espécie de cérebro que maquina a lógica das palavras por trás das rimas, e que existe independente de quem as executa ou como as executa. Parece uma instituição autônoma, que planta suas profundas considerações nas músicas que bem lhe aprouver, falando a nossas almas e mentes de maneira tão deliciosamente misteriosa e bem traduzida!...
A sabedoria musical é incrível. Ensinando um mundo com apenas um verso.
Muitas vezes, independentemente de qual canção se trate, você de repente se depara com uma verdadeira pérola da essência e experiência humana...
Penso, na verdade não só eu, afinal, é um fato conhecido por pessoas sábias e conscientes, que o amor não é essa coisa despretensiosa e à-toa que muita gente sente, julgando ser válido, como se se pudesse amar movido por forças estranhas e oscilantes, morríveis a qualquer momento. O amor não é isso, é claro que não. Não assim - descartável. Coisa aleatória e descartável. O amor não. E, de fato, deixar de amar não é normal. Porque se você escolhe amar alguém, a tendência é que seja uma atitude definitiva, não? É um paradoxo pensar num amor que acaba, que se extingue. Estamos falando de amor como tem que ser. Dificilmente alcançado, mas possível. Porque pessoas capazes de entendê-lo existem sim.
Enfim, a infinitude do amor já está contida nele mesmo. É idiotizante supor que o "produto" vem com prazo de validade. Mais triste ainda é comprá-lo vencido. A mercadoria então era falsa.
O ponto é: admirável essa sapiência musical que paira ao redor de nós e na qual poucas vezes reparamos. Como uma espécie de cérebro que maquina a lógica das palavras por trás das rimas, e que existe independente de quem as executa ou como as executa. Parece uma instituição autônoma, que planta suas profundas considerações nas músicas que bem lhe aprouver, falando a nossas almas e mentes de maneira tão deliciosamente misteriosa e bem traduzida!...
quinta-feira, 31 de maio de 2012
ELEVEN A.M.
Edward Hopper.
A mais nova descoberta.
Mais antigo que a solidão?
Nada.
Transposição.
O eu na terebentina.
quarta-feira, 30 de maio de 2012
O ADEUS
De algum modo, eu sabia, pressentia que este momento chegaria.
Momento em que deixo para trás velhos hábitos. Momento em que descubro, bastante atordoada, mas ciente, em meio às esquinas da livraria, que os livros que sempre li e que sempre me emocionaram e me distraíram e me acalentaram já não me apetecem mais.
Momento em que chego à borda das lombadas, e capas cor-de-rosa e azul-celeste não me sugerem mais nada, não me seduzem. Momento em que passo pela estante da distração, do escapismo, da massificação, do infanto-juvenil, do chick-lit, do trivial, do bobo, e nada daquilo mais me chama.
2h frenéticas, à caça, e nada. Nem um arroubozinho sequer.
O que fazer?... Não sei.
O adeus. O momento em que percebo que, de certa forma, amadureci, pois o que antes para mim era normal, muitas vezes sagrado e inquestionável, hoje parece verde e infantil. Maturei, sim, talvez. Mas não o bastante para encarar os clássicos... Os quais ainda me cansam antes mesmo que eu comece a lê-los!
Parece que ainda não sou adulta, mas também não mais criança, nem adolescente - eis o meu vácuo literário... Estou vivendo-o. Na espera de que algum arroubo venha me tirar da letargia. Porque já não há tesão por Sheldon, Nora Roberts e Danielle Steel, contudo, ainda não estou preparada para Wilde, Byron, Mansfield, enfim, toda a corja britânica, e igualmente despreparada para Eco, García Márquez e Italo Calvino. Tanta pretensa intelectualidade aglomerada ao redor desses nomes me enfada, me enerva...
E eu fico assim mesmo, sem nada ler. Não conseguindo, assim, ler nada além de mim mesma.
Momento em que deixo para trás velhos hábitos. Momento em que descubro, bastante atordoada, mas ciente, em meio às esquinas da livraria, que os livros que sempre li e que sempre me emocionaram e me distraíram e me acalentaram já não me apetecem mais.
Momento em que chego à borda das lombadas, e capas cor-de-rosa e azul-celeste não me sugerem mais nada, não me seduzem. Momento em que passo pela estante da distração, do escapismo, da massificação, do infanto-juvenil, do chick-lit, do trivial, do bobo, e nada daquilo mais me chama.
2h frenéticas, à caça, e nada. Nem um arroubozinho sequer.
O que fazer?... Não sei.
O adeus. O momento em que percebo que, de certa forma, amadureci, pois o que antes para mim era normal, muitas vezes sagrado e inquestionável, hoje parece verde e infantil. Maturei, sim, talvez. Mas não o bastante para encarar os clássicos... Os quais ainda me cansam antes mesmo que eu comece a lê-los!
Parece que ainda não sou adulta, mas também não mais criança, nem adolescente - eis o meu vácuo literário... Estou vivendo-o. Na espera de que algum arroubo venha me tirar da letargia. Porque já não há tesão por Sheldon, Nora Roberts e Danielle Steel, contudo, ainda não estou preparada para Wilde, Byron, Mansfield, enfim, toda a corja britânica, e igualmente despreparada para Eco, García Márquez e Italo Calvino. Tanta pretensa intelectualidade aglomerada ao redor desses nomes me enfada, me enerva...
E eu fico assim mesmo, sem nada ler. Não conseguindo, assim, ler nada além de mim mesma.
terça-feira, 22 de maio de 2012
Texto com o qual competi no 7º concurso "Construindo a Igualdade de Gênero"
Ser menina, pobre e preta no Brasil
A primeira vez que me dei conta de haver um abismo separando homens e mulheres, foi quando descobri que meu pai ganhava mais que minha mãe, apesar de terem a mesma profissão.
Ele, por ser homem, detinha alguns privilégios. Para começar, sempre fazia suas rondas com um revólver, presente do chefe, com o qual poderia se proteger facilmente. Já mamãe, ela só contava com a ajuda dos próprios braços magros.
Além de desarmada, também não tinha a chance de receber as mesmas comissões que papai, o qual fazia trabalhos extras como segurança.
Assim, dei-me conta de que, apesar de homem e mulher terem sido feitos “à imagem e semelhança de Deus”, os homens eram um bocadinho mais semelhantes, e por isso ganhavam mais.
Gradualmente, meus olhos se abriram para uma série de outras disparidades de gênero dentro de casa. Meu irmão, dois anos mais velho, sempre teve a notável preferência do papai, que frequentemente trazia balinhas para nós depois de alguma vigília. Mas, para meu irmão, trazia também revistas. Vai ver achava que mulheres não gostavam de ler. Pode ser até que minha mãe, inconscientemente, o tenha convencido disso, já que não lia nunca. Mas, pobrezinha, o que não admitira nem mesmo para o marido é que era quase analfabeta. Começara a trabalhar desde cedo e, atestando um triste clichê brasileiro, acabou largando os estudos.
Embora os gibis que meu irmão ganhava fossem uma prova incontestável de sua “superioridade” aos olhos do papai, só comecei a perder as estribeiras mais tarde, quando percebi que as mulheres da casa eram tratadas como a criadagem. Fazíamos de tudo, eu principalmente. Desde lavar louça e trocar lâmpada até matar rato.
Meu pai e meu irmão não ajudavam. Este último só contribuía mesmo para as despesas, já que, ao longo dos anos, substituiu os gibis pelas revistas de mulher pelada, e a escola por uma namorada. Enquanto isso, além de estudar, eu tinha de limpar a sujeira, administrar a parca comida, lavar louça, roupa, banheiro... Enfim, impossível não guardar ressentimentos. Àquela altura, eu já era uma bomba de rancor prestes a explodir.
Minha amargura só aumentou quando o papai deixou a gente. Eu estava então com quinze anos, meu irmão com uma namorada grávida e minha mãe com uma coletânea de olhos roxos. Foi uma dissolução traumática porque, embora mamãe, imbuída de coragem, tenha recorrido por conta própria à Lei Maria da Penha, nós dependíamos do pai para manter a casa financeiramente. Ele havia mudado bastante nos últimos anos. Começara a beber e humilhar a família. Mas, apesar disso, logo após a partida dele, mamãe morreu não apenas de remorso, mas também de tuberculose.
Eu e meu irmão então começamos a passar fome, como nunca antes. Fui impelida a trabalhar fora. Devido a tudo isso, eu me encontrava depressiva, rancorosa, machucada... E ainda cursava o primeiro ano do ensino médio pela terceira vez, reprovada consecutivamente.
Foi na escola que fiz outra descoberta, a que faltava para anular ainda mais minha autoestima já tão judiada. Descobri que era feia. Tal revelação veio no meio de uma aula, quando reparei que algumas colegas cochichavam apontando para mim. Intuí que havia algo errado, senti-me desajustada, não só por ter repetido o ano. Apesar de sermos um rebanho de miseráveis ali, era eu a ovelha negra, e isso contava mais. Senti de repente o peso plúmbeo da exclusão.
Com o passar do tempo, os cochichos e insultos aumentavam. O passatempo da turma era maldizer a minha aparência e cor de pele. Meus colegas chamavam-me “nariz de fornalha”, “carne preta” e “Bombril”, por conta do meu “cabelo ruim”. Eles eram tão dissimulados ao me pisotear a alma, que nenhum professor jamais tomou conhecimento.
Houve um dia em que, demasiadamente oprimida, cheguei aos prantos em casa. Não tinha ninguém para me amparar, de modo que corri para o banheiro. Ali, de frente para meu algoz, um espelho baço, eu vi minha pele tão negra que beirava o roxo, meu nariz enorme e esborrachado, de narinas dilatadas, minha boca arrematando a caricatura grotesca de um símio. Naquele momento, fechei os olhos e quis sumir. Sem rastro, sem laivo, apenas me pulverizar, acabando de vez com a existência dolorosa.
Inconsciente do que fazia, passei a me odiar, por ser negra e feia. Criei dentro de mim um monstro racista, maior do que todo o preconceito que eu poderia encontrar por parte de outrem.
Um dia, no finalzinho do ano, achei um bilhete bem dobrado dentro do meu caderno. A nota dizia: “Preciso falar, antes que fique louco. Te amo!”. Não... O papel estava endereçado a mim, como poderia ser engano?
E o remetente? André. O garoto de olhos castanhos, pele branca, cabelo claro, absurdo ar maduro. Além do charme inefável, com um dos dentes, o canino, levemente torto. Não era possível que gostasse de mim. Mais uma brincadeira estúpida!
No mesmo dia, à hora da saída, vi André de longe, recostado ao portão. Percebi que me esperava, porque sorriu. Era surreal, afinal, durante todo o ano letivo, não trocáramos mais que cinco palavrinhas. Mas ele sorria sim. E aquele canino superior não poderia estar mentindo... Mas fechei meus olhos para a verdade contida no riso do primeiro amor, e só pude ouvir o que minha alma gritava. Eu era esterco, jamais despertaria qualquer paixão.
Antes que o coitado do André terminasse de perguntar se eu recebera seu bilhete, disparei todos os tipos de xingamentos e, ato contínuo, eu chutei-lhe o saco. Mandei que me esquecesse, me deixasse em paz. Ele ainda me olhou, confuso... E eu quase acreditei.
Desde aquele dia, não tive mais notícias do André. Mas cresci, e percebi coisas que, àquela altura, era criança demais para entender. Não posso dizer que superei todos os traumas de quinze anos atrás, mas posso dizer o que quero para mim agora e para o meu futuro.
Quero continuar a ser uma mulher bem-sucedida, segura e dona de mim, apesar do que sofri. Não quero pena nem compaixão, quero oportunidade. Não quero que me dissequem, me esmiucem e me cataloguem, dizendo que sou preta, rosa ou azul. Eu sou, antes de tudo, eu. Sou humana, com algum senso-crítico e responsabilidade social.
E quero para as minhas futuras filhas e filhos, que eles tenham a chance de crescer em um Brasil diferente, mais humano, longe do enganoso estereótipo de nação que abraça a todos como filhos, mas, na realidade, segrega àqueles que não correspondem a determinadas expectativas.
Quem sabe, daqui a poucos anos, depois de mais algumas lágrimas e infâncias arrancadas, não consigamos formular enfim, ainda que a preço de sangue, uma identidade nacional verdadeira e honesta, sem máscaras, sem estratos.
Sempre terei minha própria vida como exemplo: nascer menina, pobre e preta no Brasil pode ser um pesadelo, quando nós mesmas discriminamos e anulamos nossas chances de felicidade. Ou quando acreditamos que mulher é mula de carga, que branco não ama preta, que rica não ama pobre, que bonito não ama feio...
Mas, por outro lado, nascer menina, pobre e preta no Brasil também nos faz entender, depois de alguns calos, que não precisamos sofrer eternamente no altar dos sacrifícios. Que, antes de tudo, somos gente, feitos primeiro à base de emoção e só depois cobertos de carne. Estamos para além da questão da pele, da melanina, do sexo.
E os que vierem depois de mim saberão disso tudo. Porque já está mais do que na hora de superarmos nossas leviandades, nossas picuinhas, nossos medos, e calarmos de uma vez todos os monstros sociais que insistem em anular o que temos de mais bonito: a nossa essência puramente humana, sem rótulos nem adornos. Humana. Eu sou humana, muito prazer.
A primeira vez que me dei conta de haver um abismo separando homens e mulheres, foi quando descobri que meu pai ganhava mais que minha mãe, apesar de terem a mesma profissão.
Ele, por ser homem, detinha alguns privilégios. Para começar, sempre fazia suas rondas com um revólver, presente do chefe, com o qual poderia se proteger facilmente. Já mamãe, ela só contava com a ajuda dos próprios braços magros.
Além de desarmada, também não tinha a chance de receber as mesmas comissões que papai, o qual fazia trabalhos extras como segurança.
Assim, dei-me conta de que, apesar de homem e mulher terem sido feitos “à imagem e semelhança de Deus”, os homens eram um bocadinho mais semelhantes, e por isso ganhavam mais.
Gradualmente, meus olhos se abriram para uma série de outras disparidades de gênero dentro de casa. Meu irmão, dois anos mais velho, sempre teve a notável preferência do papai, que frequentemente trazia balinhas para nós depois de alguma vigília. Mas, para meu irmão, trazia também revistas. Vai ver achava que mulheres não gostavam de ler. Pode ser até que minha mãe, inconscientemente, o tenha convencido disso, já que não lia nunca. Mas, pobrezinha, o que não admitira nem mesmo para o marido é que era quase analfabeta. Começara a trabalhar desde cedo e, atestando um triste clichê brasileiro, acabou largando os estudos.
Embora os gibis que meu irmão ganhava fossem uma prova incontestável de sua “superioridade” aos olhos do papai, só comecei a perder as estribeiras mais tarde, quando percebi que as mulheres da casa eram tratadas como a criadagem. Fazíamos de tudo, eu principalmente. Desde lavar louça e trocar lâmpada até matar rato.
Meu pai e meu irmão não ajudavam. Este último só contribuía mesmo para as despesas, já que, ao longo dos anos, substituiu os gibis pelas revistas de mulher pelada, e a escola por uma namorada. Enquanto isso, além de estudar, eu tinha de limpar a sujeira, administrar a parca comida, lavar louça, roupa, banheiro... Enfim, impossível não guardar ressentimentos. Àquela altura, eu já era uma bomba de rancor prestes a explodir.
Minha amargura só aumentou quando o papai deixou a gente. Eu estava então com quinze anos, meu irmão com uma namorada grávida e minha mãe com uma coletânea de olhos roxos. Foi uma dissolução traumática porque, embora mamãe, imbuída de coragem, tenha recorrido por conta própria à Lei Maria da Penha, nós dependíamos do pai para manter a casa financeiramente. Ele havia mudado bastante nos últimos anos. Começara a beber e humilhar a família. Mas, apesar disso, logo após a partida dele, mamãe morreu não apenas de remorso, mas também de tuberculose.
Eu e meu irmão então começamos a passar fome, como nunca antes. Fui impelida a trabalhar fora. Devido a tudo isso, eu me encontrava depressiva, rancorosa, machucada... E ainda cursava o primeiro ano do ensino médio pela terceira vez, reprovada consecutivamente.
Foi na escola que fiz outra descoberta, a que faltava para anular ainda mais minha autoestima já tão judiada. Descobri que era feia. Tal revelação veio no meio de uma aula, quando reparei que algumas colegas cochichavam apontando para mim. Intuí que havia algo errado, senti-me desajustada, não só por ter repetido o ano. Apesar de sermos um rebanho de miseráveis ali, era eu a ovelha negra, e isso contava mais. Senti de repente o peso plúmbeo da exclusão.
Com o passar do tempo, os cochichos e insultos aumentavam. O passatempo da turma era maldizer a minha aparência e cor de pele. Meus colegas chamavam-me “nariz de fornalha”, “carne preta” e “Bombril”, por conta do meu “cabelo ruim”. Eles eram tão dissimulados ao me pisotear a alma, que nenhum professor jamais tomou conhecimento.
Houve um dia em que, demasiadamente oprimida, cheguei aos prantos em casa. Não tinha ninguém para me amparar, de modo que corri para o banheiro. Ali, de frente para meu algoz, um espelho baço, eu vi minha pele tão negra que beirava o roxo, meu nariz enorme e esborrachado, de narinas dilatadas, minha boca arrematando a caricatura grotesca de um símio. Naquele momento, fechei os olhos e quis sumir. Sem rastro, sem laivo, apenas me pulverizar, acabando de vez com a existência dolorosa.
Inconsciente do que fazia, passei a me odiar, por ser negra e feia. Criei dentro de mim um monstro racista, maior do que todo o preconceito que eu poderia encontrar por parte de outrem.
Um dia, no finalzinho do ano, achei um bilhete bem dobrado dentro do meu caderno. A nota dizia: “Preciso falar, antes que fique louco. Te amo!”. Não... O papel estava endereçado a mim, como poderia ser engano?
E o remetente? André. O garoto de olhos castanhos, pele branca, cabelo claro, absurdo ar maduro. Além do charme inefável, com um dos dentes, o canino, levemente torto. Não era possível que gostasse de mim. Mais uma brincadeira estúpida!
No mesmo dia, à hora da saída, vi André de longe, recostado ao portão. Percebi que me esperava, porque sorriu. Era surreal, afinal, durante todo o ano letivo, não trocáramos mais que cinco palavrinhas. Mas ele sorria sim. E aquele canino superior não poderia estar mentindo... Mas fechei meus olhos para a verdade contida no riso do primeiro amor, e só pude ouvir o que minha alma gritava. Eu era esterco, jamais despertaria qualquer paixão.
Antes que o coitado do André terminasse de perguntar se eu recebera seu bilhete, disparei todos os tipos de xingamentos e, ato contínuo, eu chutei-lhe o saco. Mandei que me esquecesse, me deixasse em paz. Ele ainda me olhou, confuso... E eu quase acreditei.
Desde aquele dia, não tive mais notícias do André. Mas cresci, e percebi coisas que, àquela altura, era criança demais para entender. Não posso dizer que superei todos os traumas de quinze anos atrás, mas posso dizer o que quero para mim agora e para o meu futuro.
Quero continuar a ser uma mulher bem-sucedida, segura e dona de mim, apesar do que sofri. Não quero pena nem compaixão, quero oportunidade. Não quero que me dissequem, me esmiucem e me cataloguem, dizendo que sou preta, rosa ou azul. Eu sou, antes de tudo, eu. Sou humana, com algum senso-crítico e responsabilidade social.
E quero para as minhas futuras filhas e filhos, que eles tenham a chance de crescer em um Brasil diferente, mais humano, longe do enganoso estereótipo de nação que abraça a todos como filhos, mas, na realidade, segrega àqueles que não correspondem a determinadas expectativas.
Quem sabe, daqui a poucos anos, depois de mais algumas lágrimas e infâncias arrancadas, não consigamos formular enfim, ainda que a preço de sangue, uma identidade nacional verdadeira e honesta, sem máscaras, sem estratos.
Sempre terei minha própria vida como exemplo: nascer menina, pobre e preta no Brasil pode ser um pesadelo, quando nós mesmas discriminamos e anulamos nossas chances de felicidade. Ou quando acreditamos que mulher é mula de carga, que branco não ama preta, que rica não ama pobre, que bonito não ama feio...
Mas, por outro lado, nascer menina, pobre e preta no Brasil também nos faz entender, depois de alguns calos, que não precisamos sofrer eternamente no altar dos sacrifícios. Que, antes de tudo, somos gente, feitos primeiro à base de emoção e só depois cobertos de carne. Estamos para além da questão da pele, da melanina, do sexo.
E os que vierem depois de mim saberão disso tudo. Porque já está mais do que na hora de superarmos nossas leviandades, nossas picuinhas, nossos medos, e calarmos de uma vez todos os monstros sociais que insistem em anular o que temos de mais bonito: a nossa essência puramente humana, sem rótulos nem adornos. Humana. Eu sou humana, muito prazer.
segunda-feira, 21 de maio de 2012
MULHERES, REPITAM COMIGO:
— Não mendigarei o amor de ninguém. Também não barganharei usando o amor como moeda de troca. Amarei indistintamente. Amarei como me amo. Se não me amarem de volta, azar de quem me perdeu. Ou melhor, não sou coisa para ser possuída e perdida. Então azar mesmo é de quem não soube me valorizar. Todavia, ponho-me superior a tudo isso - sentimentos são preciosos demais para que eu estrague minha própria vida chateada ante a incapacidade ou desleixo emocional de terceiros.
Não vou deixar que me classifiquem, massacrando-me, nem aceitar rótulos alheios. Meu bom-gosto ou falta dele pode até ser julgado de acordo com o que porto ou trajo, mas isso também é relativo, e o meu valor real não é medido pelo tamanho do meu salto, pela cor do meu sapato, pela cor do meu esmalte, pela cor do meu cabelo ou pela cor da minha pele. Não tenho que me sentir inferior por que alguém diz: "Prefiro as branquinhas". Não tenho que me sentir inferior por que alguém diz: "Mulheres negras têm o corpo perfeito, as outras não". O que é o corpo? Matéria que se corrói. Não tenho que me sentir inferior nem mesmo se as minhas feições todas, até as microscópicas nuanças, não correspondem ao padrão de beleza preponderante. Não faço parte d'um gado. Ainda que eu busque minha identidade dentro de uma coletividade osmótica, não sou cópia, não sou réplica, não sou arremedo de ninguém.
Não vou deixar nenhum tolo tacanho me lobotomizar, fazendo-me acreditar que a sortuda sou eu, por ele estar junto comigo. Não vou encarar a vida como uma missão a ser cumprida unicamente para se subir ao altar e afins. Porque, se assim encaro, deixo de viver no momento em que me enrolar por entre as rendas matrimoniais ou amigadas. E fim.
Também não azucrinarei ninguém com minhas próprias exigências. Se quero algo, que venha de mim, e que eu seja a primeira dar. Mas que eu não seja a única. No momento cauteloso das primeiras interações, em que eu perceber que a hipotética outra metade não é a minha exata metade, da mesma maneira doada e rendida, revejo o cenário, pulo fora de cena.
Ademais, não fingirei que sou um poço de atitude, quando tudo o que eu quero é mergulhar-me em letargia, ver filmes românticos, de coque e pantufa, sentada no sofá com meus velhos.
Não vou fingir que tenho a vida mais emocionante do mundo, que fui a todos os lugares, que vi de tudo e provei de tudo, quando na verdade ser pura e simplesmente eu é tudo o que o meu coração almeja.
Não vou me iludir, fantasiar, por exemplo, repetindo o mantra: “Todos os machos da espécie me desejam”, com a convicção ilusória de que isso é felicidade, e de que minha "presença de palco" seduz a todos, e meu espírito aventureiro não me prende a ninguém, deixando, assim, um rastro de lágrimas e cacos aos meus pés.
Tudo o que eu quero, e que vou ser, é ser eu, sem a pretensão arrogante de ser eu e mais um pouco, quando o meu eu já encerra tudo. Terei dois ou três admiradores, dentre os quais papai e/ou mamãe, nenhuma bisonha ambição de sair por aí ferindo os corações de outrem, por mais glamoroso que isso pareça através das lentes cor-de-rosa.
Vou ser uma pessoa centrada, se é o que quero ser; cuidando bem de mim também, e zelando pela vida que carrego, por mais que vozes no entorno digam que o bacana mesmo é relevar, curtir despreocupadamente, desesperadamente, pular de noite em noite, de agito em agito, de trago em trago, de espetáculo em espetáculo, de horror em horror, de vazio em vazio. Banalidade cíclica! E se eu quiser ser quadrada? E se gosto de mim muito mais quando sou quadrada? Serei quadrada e pronto!
Que se danem as expectativas não maturadas. Os lugares que eu "tenho" que ir, as pessoas que eu "tenho" que conhecer, as iguarias que eu "tenho" que provar, os olhos que eu "tenho" que capturar!
Eu não tenho que comer sushi/sashimi só porque os outros ocidentais encasquetaram de "sacralizar" o arroz empapado e o peixe cru. Não tenho que ler os livros que todo mundo lê só pelo medo de, caso não o faça, parecer burra, bitolada ou antiquada e démodé.
Eu não tenho, na verdade, a obrigação de ser nada. E se eu quiser ser um nada, que seja, essa será a minha única obrigação! O meu dever, primeiramente, é comigo. Eu sou, aqui na Terra, em termos triviais e brutos, o meu melhor amigo. Pois eu é que convivo comigo mesma todos os dias da minha vida, convivo de dentro para fora, e vejo o mundo através dos meus próprios olhos. Se eu não buscar ser eu, rapidamente me sufocarei, e me matarei, e então viver dentro de mim será insuportável, porque serei eu e milhões de outros eus intoleráveis, intragáveis, oscilantes, multipolares. Por isso mesmo é que todas as mulheres de mim, já as matei. E a cada novo dia será um novo dia, mas eu permaneço sendo eu, aqui, aprendendo de mim e dos outros, crescendo e moldando-me, no entanto portando a mesma essência do meu eu, que é única, irrepetível, e só minha. Só eu.
“Todas as belezas contêm, assim como todos os fenômenos possíveis, algo de eterno e algo de transitório, de absoluto e de particular. A beleza absoluta e eterna inexiste, ou melhor, é apenas uma abstração empobrecida na superfície geral das diferentes belezas. O elemento particular de cada beleza vem das paixões, e como temos nossas paixões particulares, temos nossa beleza particular.”
Charles Baudelaire
Não vou deixar que me classifiquem, massacrando-me, nem aceitar rótulos alheios. Meu bom-gosto ou falta dele pode até ser julgado de acordo com o que porto ou trajo, mas isso também é relativo, e o meu valor real não é medido pelo tamanho do meu salto, pela cor do meu sapato, pela cor do meu esmalte, pela cor do meu cabelo ou pela cor da minha pele. Não tenho que me sentir inferior por que alguém diz: "Prefiro as branquinhas". Não tenho que me sentir inferior por que alguém diz: "Mulheres negras têm o corpo perfeito, as outras não". O que é o corpo? Matéria que se corrói. Não tenho que me sentir inferior nem mesmo se as minhas feições todas, até as microscópicas nuanças, não correspondem ao padrão de beleza preponderante. Não faço parte d'um gado. Ainda que eu busque minha identidade dentro de uma coletividade osmótica, não sou cópia, não sou réplica, não sou arremedo de ninguém.
Não vou deixar nenhum tolo tacanho me lobotomizar, fazendo-me acreditar que a sortuda sou eu, por ele estar junto comigo. Não vou encarar a vida como uma missão a ser cumprida unicamente para se subir ao altar e afins. Porque, se assim encaro, deixo de viver no momento em que me enrolar por entre as rendas matrimoniais ou amigadas. E fim.
Também não azucrinarei ninguém com minhas próprias exigências. Se quero algo, que venha de mim, e que eu seja a primeira dar. Mas que eu não seja a única. No momento cauteloso das primeiras interações, em que eu perceber que a hipotética outra metade não é a minha exata metade, da mesma maneira doada e rendida, revejo o cenário, pulo fora de cena.
Ademais, não fingirei que sou um poço de atitude, quando tudo o que eu quero é mergulhar-me em letargia, ver filmes românticos, de coque e pantufa, sentada no sofá com meus velhos.
Não vou fingir que tenho a vida mais emocionante do mundo, que fui a todos os lugares, que vi de tudo e provei de tudo, quando na verdade ser pura e simplesmente eu é tudo o que o meu coração almeja.
Não vou me iludir, fantasiar, por exemplo, repetindo o mantra: “Todos os machos da espécie me desejam”, com a convicção ilusória de que isso é felicidade, e de que minha "presença de palco" seduz a todos, e meu espírito aventureiro não me prende a ninguém, deixando, assim, um rastro de lágrimas e cacos aos meus pés.
Tudo o que eu quero, e que vou ser, é ser eu, sem a pretensão arrogante de ser eu e mais um pouco, quando o meu eu já encerra tudo. Terei dois ou três admiradores, dentre os quais papai e/ou mamãe, nenhuma bisonha ambição de sair por aí ferindo os corações de outrem, por mais glamoroso que isso pareça através das lentes cor-de-rosa.
Vou ser uma pessoa centrada, se é o que quero ser; cuidando bem de mim também, e zelando pela vida que carrego, por mais que vozes no entorno digam que o bacana mesmo é relevar, curtir despreocupadamente, desesperadamente, pular de noite em noite, de agito em agito, de trago em trago, de espetáculo em espetáculo, de horror em horror, de vazio em vazio. Banalidade cíclica! E se eu quiser ser quadrada? E se gosto de mim muito mais quando sou quadrada? Serei quadrada e pronto!
Que se danem as expectativas não maturadas. Os lugares que eu "tenho" que ir, as pessoas que eu "tenho" que conhecer, as iguarias que eu "tenho" que provar, os olhos que eu "tenho" que capturar!
Eu não tenho que comer sushi/sashimi só porque os outros ocidentais encasquetaram de "sacralizar" o arroz empapado e o peixe cru. Não tenho que ler os livros que todo mundo lê só pelo medo de, caso não o faça, parecer burra, bitolada ou antiquada e démodé.
Eu não tenho, na verdade, a obrigação de ser nada. E se eu quiser ser um nada, que seja, essa será a minha única obrigação! O meu dever, primeiramente, é comigo. Eu sou, aqui na Terra, em termos triviais e brutos, o meu melhor amigo. Pois eu é que convivo comigo mesma todos os dias da minha vida, convivo de dentro para fora, e vejo o mundo através dos meus próprios olhos. Se eu não buscar ser eu, rapidamente me sufocarei, e me matarei, e então viver dentro de mim será insuportável, porque serei eu e milhões de outros eus intoleráveis, intragáveis, oscilantes, multipolares. Por isso mesmo é que todas as mulheres de mim, já as matei. E a cada novo dia será um novo dia, mas eu permaneço sendo eu, aqui, aprendendo de mim e dos outros, crescendo e moldando-me, no entanto portando a mesma essência do meu eu, que é única, irrepetível, e só minha. Só eu.
“Todas as belezas contêm, assim como todos os fenômenos possíveis, algo de eterno e algo de transitório, de absoluto e de particular. A beleza absoluta e eterna inexiste, ou melhor, é apenas uma abstração empobrecida na superfície geral das diferentes belezas. O elemento particular de cada beleza vem das paixões, e como temos nossas paixões particulares, temos nossa beleza particular.”
Charles Baudelaire
quinta-feira, 10 de maio de 2012
MINHA PINTA
Simplesmente odeio esta pinta. Odeio. Ela sempre me passa a sensação de que não deveria estar aqui, tão folgadamente alinhada em meio a meus poros, na bochecha esquerda.
Querendo ou não, a pessoa que tem uma pinta é diferente das demais. Vive como se não a tivesse, mas tem. A todo momento, o subconsciente do indivíduo detentor da pinta faz com que esse pobre inocente acredite que a tal da pinta não está ali, esquecendo-a satisfatoriamente. No entanto, ela está. E é só cruzar com um espelho, que a verdade outra vez se desnuda: Eis a pinta! Austera, invasora, caótica, assimétrica.
Viver portando uma pinta não é tarefa fácil. Quem as possui, sim, vive, mas nem sempre se conforma ou tranquiliza. Eu me conformo, algumas vezes, quando deixo de achar que a pintinha tem alguma relevância em minha existência - meu fracasso ou meu sucesso... Mas, na maior parte do tempo, ei-la, me incomodando!
Eu tiraria esta pinta. Tiraria mesmo. Queria ter um rosto uniforme. Não gosto que a genética ou o acaso das pintas imponha-me algo que não deveria estar aqui. De fato, todo o resto se comporta, ainda que nem sempre belo: nariz grande tem sua razão de ser, olhos meio tristonhos, segundo minha mãe, também têm sua razão de ser, queixo fino tem sua razão de ser, testa larga tem sua razão de ser, dentes de ratinho têm sua razão de ser... Mas, pinta?! Não!
No entanto, nos momentos em que a dita cuja me consola, seja lá por qual motivo, quando somos só eu e ela... Não sei...
Nesses momentos, chego a pensar que esta pinta faz de mim um ser não puramente diferente, mas também especial. Chego a cogitar hipóteses tão belas para o futuro, em que passarei pela rua, e todos apontarão, deslumbrados: "Olha!... É a garota da pinta!...". E então esta pinta será até maior do que eu. E todos me conhecerão como "a garota da pinta no rosto", "a exótica garota da pinta no rosto", e não mais eu terei uma triste pinta, e sim a pinta é que me terá em seu rosto...
E o devaneio logo passa, e volto a odiá-la. Mas que seria belo, ah!, isso seria...
Querendo ou não, a pessoa que tem uma pinta é diferente das demais. Vive como se não a tivesse, mas tem. A todo momento, o subconsciente do indivíduo detentor da pinta faz com que esse pobre inocente acredite que a tal da pinta não está ali, esquecendo-a satisfatoriamente. No entanto, ela está. E é só cruzar com um espelho, que a verdade outra vez se desnuda: Eis a pinta! Austera, invasora, caótica, assimétrica.
Viver portando uma pinta não é tarefa fácil. Quem as possui, sim, vive, mas nem sempre se conforma ou tranquiliza. Eu me conformo, algumas vezes, quando deixo de achar que a pintinha tem alguma relevância em minha existência - meu fracasso ou meu sucesso... Mas, na maior parte do tempo, ei-la, me incomodando!
Eu tiraria esta pinta. Tiraria mesmo. Queria ter um rosto uniforme. Não gosto que a genética ou o acaso das pintas imponha-me algo que não deveria estar aqui. De fato, todo o resto se comporta, ainda que nem sempre belo: nariz grande tem sua razão de ser, olhos meio tristonhos, segundo minha mãe, também têm sua razão de ser, queixo fino tem sua razão de ser, testa larga tem sua razão de ser, dentes de ratinho têm sua razão de ser... Mas, pinta?! Não!
No entanto, nos momentos em que a dita cuja me consola, seja lá por qual motivo, quando somos só eu e ela... Não sei...
Nesses momentos, chego a pensar que esta pinta faz de mim um ser não puramente diferente, mas também especial. Chego a cogitar hipóteses tão belas para o futuro, em que passarei pela rua, e todos apontarão, deslumbrados: "Olha!... É a garota da pinta!...". E então esta pinta será até maior do que eu. E todos me conhecerão como "a garota da pinta no rosto", "a exótica garota da pinta no rosto", e não mais eu terei uma triste pinta, e sim a pinta é que me terá em seu rosto...
E o devaneio logo passa, e volto a odiá-la. Mas que seria belo, ah!, isso seria...
terça-feira, 1 de maio de 2012
SABER-DE-COR
Cor, do latim, significa "coração".
"Saber de cor" é isto: algo que você aprendeu e internalizou de tal maneira, que aquilo ficou armazenado irrevogavelmente em seu íntimo — no coração.
É uma das expressões mais bonitas da língua portuguesa. Ignorada até uma dessas manhãs quaisquer da vida, assim, displicentemente, quando, na faculdade, brota, em meio a uma aula de Fonologia... Engraçado como surgem as epifanias. Então, a ideia nos captura, e nos faz reféns, não nos deixando nunca.
Saber de cor está para além do falso de(cor)ar sabatinado, do bê-a-bá, do aprender, recitar, para depois, caindo no limbo, esquecer.
Saber de cor é trazer algo para dentro de si, e deixá-lo ali, e nem mesmo os seus mais turbulentos intentos ou as mais caprichosas convicções são capazes de anular aquilo que você sabe com o coração.
Quando, racionalmente, você quer saber, usa-se o cérebro. No entanto, para que o saber faça parte de você, flua pelo sangue, inunde, percorra as veias, artérias, inflame os sentidos, então é necessário que se saiba de cor.
Saber de cor é tornar precioso aquilo que se sabe, jamais esquecê-lo. E a quantidade de coisas que assim você pode saber é infinita... Mas, atenção: Só guarde no coração o que real e imediatamente soe como algo que há muito tempo você procurava, como um pedaço que faltava, e agora eis aí; e você, completo.
Guarde, assim, estritamente, o que lhe for querido.
Guarde no cor, no cuore, no coeur...
No coração.
"Saber de cor" é isto: algo que você aprendeu e internalizou de tal maneira, que aquilo ficou armazenado irrevogavelmente em seu íntimo — no coração.
É uma das expressões mais bonitas da língua portuguesa. Ignorada até uma dessas manhãs quaisquer da vida, assim, displicentemente, quando, na faculdade, brota, em meio a uma aula de Fonologia... Engraçado como surgem as epifanias. Então, a ideia nos captura, e nos faz reféns, não nos deixando nunca.
Saber de cor está para além do falso de(cor)ar sabatinado, do bê-a-bá, do aprender, recitar, para depois, caindo no limbo, esquecer.
Saber de cor é trazer algo para dentro de si, e deixá-lo ali, e nem mesmo os seus mais turbulentos intentos ou as mais caprichosas convicções são capazes de anular aquilo que você sabe com o coração.
Quando, racionalmente, você quer saber, usa-se o cérebro. No entanto, para que o saber faça parte de você, flua pelo sangue, inunde, percorra as veias, artérias, inflame os sentidos, então é necessário que se saiba de cor.
Saber de cor é tornar precioso aquilo que se sabe, jamais esquecê-lo. E a quantidade de coisas que assim você pode saber é infinita... Mas, atenção: Só guarde no coração o que real e imediatamente soe como algo que há muito tempo você procurava, como um pedaço que faltava, e agora eis aí; e você, completo.
Guarde, assim, estritamente, o que lhe for querido.
Guarde no cor, no cuore, no coeur...
No coração.
MEMÓRIA HUMANA
Quando a gente vai vivendo
Não sabe que vai vivendo
as nossas futuras lembranças.
E a gente vai vivendo
Na inocência de achar
Que cada momento dura
Eternamente
E não sabe que, de fato, o momento dura
Mas dura só na mente
Porque se torna lembrança rapidamente.
E a gente vai vivendo, sim
Achando que vai viver para sempre
E mal sabe que, no fim,
Tudo não passa de fragmentos...
Um poema...
Um cheiro...
Todos bem mortos no tempo
Só bem vivos na mente,
dentro da gente.
E a gente vai vivendo
Até que chega o momento
Que lembrança a gente também se torna
E forma lembranças na mente de nossa gente
E a gente e as nossas lembranças
Já não existem mais
Porque viramos a própria lembrança
Poeira
Areia
Silêncio.
Não sabe que vai vivendo
as nossas futuras lembranças.
E a gente vai vivendo
Na inocência de achar
Que cada momento dura
Eternamente
E não sabe que, de fato, o momento dura
Mas dura só na mente
Porque se torna lembrança rapidamente.
E a gente vai vivendo, sim
Achando que vai viver para sempre
E mal sabe que, no fim,
Tudo não passa de fragmentos...
Um poema...
Um cheiro...
Todos bem mortos no tempo
Só bem vivos na mente,
dentro da gente.
E a gente vai vivendo
Até que chega o momento
Que lembrança a gente também se torna
E forma lembranças na mente de nossa gente
E a gente e as nossas lembranças
Já não existem mais
Porque viramos a própria lembrança
Poeira
Areia
Silêncio.
quinta-feira, 26 de abril de 2012
O CORAÇÃO
O coração - é este músculo bizarro
Sem concreta definição
Sem razão de ser
À margem do corpo,
Alheio
Querendo, insistindo em existir por si próprio
E fazendo todos os demais órgãos
Pagarem o preço.
Daí vêm:
O fígado etílico, o cérebro congestionado, e os olhos cansados
De tanto chorar
E lábios cansados
De tanto franzir
E a língua cansada
De tentar reproduzir
palavras loucas, ditadas
(sem real tradução, sem possível correção)
pelo famigerado conturbado coração.
Sem concreta definição
Sem razão de ser
À margem do corpo,
Alheio
Querendo, insistindo em existir por si próprio
E fazendo todos os demais órgãos
Pagarem o preço.
Daí vêm:
O fígado etílico, o cérebro congestionado, e os olhos cansados
De tanto chorar
E lábios cansados
De tanto franzir
E a língua cansada
De tentar reproduzir
palavras loucas, ditadas
(sem real tradução, sem possível correção)
pelo famigerado conturbado coração.
quarta-feira, 14 de março de 2012
CARTA ANÔNIMA
Cheguei em casa estourado, cansado, cansado de tanto pensar, tentar ser um cara legal. Cansado de o pessoal pisar em todo mundo no escritório, e mais ainda cansado de forçar otimismo e acreditar que tudo vai melhorar, para mim e para os outros capachos lá do serviço.
A caminho de casa, gritei, xinguei, urrei. Voltei assim caminhando feito um cão atropelado, sangrando, já nas últimas. Humilhado pelo assistente do sub-chefe, o que me resta? Isto significava não ter qualquer chance de crescer um milímetro sequer. Nunca.
Desiludi-me com a vida, de modo geral. Aquela desilusão que alguma hora nos abate. Entrei logo batendo a porta, tirei a gravata como se escapulisse da forca, joguei-me na poltrona surrada da sala. Pensei seriamente em pedir demissão, quebrar a cabeça na parede, eu sei lá. Pensei em fugir de casa, ir morar dentro do meu carro quebrado, e sobreviver da renda que daria se eu vendesse minha coleção de HQs.
"Um homem de trinta anos não pode continuar fazendo coisas de garoto"... E, é claro, eu deixaria minha esposa.
Um derrotado. Um fracasso total. Um homem sem perspectivas, sem riqueza, sem encanto.
Eu estava decidindo a melhor forma de me vingar do sistema, ou de morrer, quando ela apareceu na sala e grunhiu:
"Chegou uma carta aí pra você".
Jogou alguma coisa no meu colo, e quando abri os olhos já evaporara outra vez.
Contas! Contas a pagar!
Espera... Não.
"Hum..."
Fiquei curioso. Uma carta mesmo? O que poderia...?
No verso do envelope, no campo "destinatário", estava escrito: "Ao seu jeito manso".
O meu... O quê? Meu "jeito manso"?! Seria um código? Refrão de pagode? Engano?
Abri. Ninguém se identificava como remetente. Eu sabia, pelo menos, que não viera pelo correio. Alguém não muito longe de mim. Dediquei-me à boba alegria, de repente descoberta, de decifrar a missiva secreta.
Meu remetente anônimo começou:
"Nem tente. Não tente descobrir quem escreve a você. Será impossível, esforço inútil. Ademais, não importa. É só para dizer que você tem aí um tesouro para o qual talvez ainda nem tenha atentado, mas aí está... É esse seu jeito manso que me faz pensar que tudo ficará perfeitamente bem. Como você faz para convencer a todos de que as coisas podem realmente dar certo? Acredito que, se um dia você perder essa sua tranquilidade, o mundo também perderá de vez o próprio eixo.
Não quero que você pense que quem aqui escreve é alguma espécie de tresloucada. É apenas uma alma abatida, que um dia descobriu conforto no jeito manso de um broto tranquilo, de modos calmos e fala agradável. Esse sujeito era você. Agora sempre penso que tudo vai dar certo, porque as suas palavras naquele dia me convenceram de que seria assim. A minha vida (talvez eu esteja exagerando, mas pode ser verdade) mudou desde quando você, sem esforço nenhum, me fez entender que as coisas nunca estão muito ruins, mesmo quando assim parecem.
Agora esclareço: Eu devia isso a você. Devia esta carta em gratidão, porque até mesmo a mais singela gentileza entre desconhecidos pode gerar uma cadeia de bons acontecimentos que devem ser devidamente retribuídos. Assim eu retribuo. Pedindo a você que nunca deixe de ser a pessoa maravilhosa que você expõe, ainda que eu só tenha tido a chance de percebê-lo durante aquela curta interação no metrô... Espere! Estou falando demais. Você provavelmente não lembra. Lembra-se de quando me respondeu que horas eram, e sorriu? Não, acho que não. Mas se sim, saiba que acaba de ajuntar ainda muito mais pontos do que antes.
Enfim, meu caro desconhecido... Consegui descobrir o suficiente para chegar até aqui, ao seu endereço. E não prossigo, exceto para reforçar: Não deixe nunca de ser você. Não perca esse seu jeito manso, a voz segura e calma que falou comigo no metrô. Você parecia felicíssimo, mesmo que, conforme me disse, seu carro tivesse quebrado logo naquela manhã, tão importante. Não deixe de ser a pessoa divina que me pareceu, de coração tão leve e bom-humor imbatível, e que ainda me fez ter a irrepreensível vontade de possuir em mim essa mesma alma, esse mesmo espírito e a mesma mansidão que há em você. Não me puna por amá-lo secretamente, querido estranho, desde aquele dia... Você é um daqueles pequenos milagres".
E era tudo. Terminava aí. Abrupta e infinitamente bela. Uma letra idosa. Talvez cansada. Mas bela. Quem seria?... Eu não conseguia lembrar. Havia sido tão traumático aquele dia em que o carro quebrou e eu pegara o metrô, porque a promoção tão esperada não veio! Tudo desde então parecia vir desabando... E agora, esta carta... Esta carta escrita por... Eu não conseguia lembrar-me de jeito nenhum! Uma vaga e imprecisa ideia de que tivesse dito as horas a uma senhora grisalha e tristonha no metrô, mas não tive certeza.
Eu apenas... Apenas sorri. E o mundo voltou a ser o mesmo, o mesmo belo mundo que era belo demais para que eu pensasse em desistir.
Ah! A delícia de se descobrir especial...
A caminho de casa, gritei, xinguei, urrei. Voltei assim caminhando feito um cão atropelado, sangrando, já nas últimas. Humilhado pelo assistente do sub-chefe, o que me resta? Isto significava não ter qualquer chance de crescer um milímetro sequer. Nunca.
Desiludi-me com a vida, de modo geral. Aquela desilusão que alguma hora nos abate. Entrei logo batendo a porta, tirei a gravata como se escapulisse da forca, joguei-me na poltrona surrada da sala. Pensei seriamente em pedir demissão, quebrar a cabeça na parede, eu sei lá. Pensei em fugir de casa, ir morar dentro do meu carro quebrado, e sobreviver da renda que daria se eu vendesse minha coleção de HQs.
"Um homem de trinta anos não pode continuar fazendo coisas de garoto"... E, é claro, eu deixaria minha esposa.
Um derrotado. Um fracasso total. Um homem sem perspectivas, sem riqueza, sem encanto.
Eu estava decidindo a melhor forma de me vingar do sistema, ou de morrer, quando ela apareceu na sala e grunhiu:
"Chegou uma carta aí pra você".
Jogou alguma coisa no meu colo, e quando abri os olhos já evaporara outra vez.
Contas! Contas a pagar!
Espera... Não.
"Hum..."
Fiquei curioso. Uma carta mesmo? O que poderia...?
No verso do envelope, no campo "destinatário", estava escrito: "Ao seu jeito manso".
O meu... O quê? Meu "jeito manso"?! Seria um código? Refrão de pagode? Engano?
Abri. Ninguém se identificava como remetente. Eu sabia, pelo menos, que não viera pelo correio. Alguém não muito longe de mim. Dediquei-me à boba alegria, de repente descoberta, de decifrar a missiva secreta.
Meu remetente anônimo começou:
"Nem tente. Não tente descobrir quem escreve a você. Será impossível, esforço inútil. Ademais, não importa. É só para dizer que você tem aí um tesouro para o qual talvez ainda nem tenha atentado, mas aí está... É esse seu jeito manso que me faz pensar que tudo ficará perfeitamente bem. Como você faz para convencer a todos de que as coisas podem realmente dar certo? Acredito que, se um dia você perder essa sua tranquilidade, o mundo também perderá de vez o próprio eixo.
Não quero que você pense que quem aqui escreve é alguma espécie de tresloucada. É apenas uma alma abatida, que um dia descobriu conforto no jeito manso de um broto tranquilo, de modos calmos e fala agradável. Esse sujeito era você. Agora sempre penso que tudo vai dar certo, porque as suas palavras naquele dia me convenceram de que seria assim. A minha vida (talvez eu esteja exagerando, mas pode ser verdade) mudou desde quando você, sem esforço nenhum, me fez entender que as coisas nunca estão muito ruins, mesmo quando assim parecem.
Agora esclareço: Eu devia isso a você. Devia esta carta em gratidão, porque até mesmo a mais singela gentileza entre desconhecidos pode gerar uma cadeia de bons acontecimentos que devem ser devidamente retribuídos. Assim eu retribuo. Pedindo a você que nunca deixe de ser a pessoa maravilhosa que você expõe, ainda que eu só tenha tido a chance de percebê-lo durante aquela curta interação no metrô... Espere! Estou falando demais. Você provavelmente não lembra. Lembra-se de quando me respondeu que horas eram, e sorriu? Não, acho que não. Mas se sim, saiba que acaba de ajuntar ainda muito mais pontos do que antes.
Enfim, meu caro desconhecido... Consegui descobrir o suficiente para chegar até aqui, ao seu endereço. E não prossigo, exceto para reforçar: Não deixe nunca de ser você. Não perca esse seu jeito manso, a voz segura e calma que falou comigo no metrô. Você parecia felicíssimo, mesmo que, conforme me disse, seu carro tivesse quebrado logo naquela manhã, tão importante. Não deixe de ser a pessoa divina que me pareceu, de coração tão leve e bom-humor imbatível, e que ainda me fez ter a irrepreensível vontade de possuir em mim essa mesma alma, esse mesmo espírito e a mesma mansidão que há em você. Não me puna por amá-lo secretamente, querido estranho, desde aquele dia... Você é um daqueles pequenos milagres".
E era tudo. Terminava aí. Abrupta e infinitamente bela. Uma letra idosa. Talvez cansada. Mas bela. Quem seria?... Eu não conseguia lembrar. Havia sido tão traumático aquele dia em que o carro quebrou e eu pegara o metrô, porque a promoção tão esperada não veio! Tudo desde então parecia vir desabando... E agora, esta carta... Esta carta escrita por... Eu não conseguia lembrar-me de jeito nenhum! Uma vaga e imprecisa ideia de que tivesse dito as horas a uma senhora grisalha e tristonha no metrô, mas não tive certeza.
Eu apenas... Apenas sorri. E o mundo voltou a ser o mesmo, o mesmo belo mundo que era belo demais para que eu pensasse em desistir.
Ah! A delícia de se descobrir especial...
JANELA D'ÁGUA
Estávamos eu e ela presos na casa, a noite fria, porque chovia muito. Eu não tinha certeza do que significava toda aquela escuridão, ou todo aquele nervosismo, mas eu sei que sentia.
Sentia milhares de coisas ao mesmo tempo, e o vento que entrava pela janela era bom. Me fazia recordar de coisas que eu ainda nem vivera, e me fazia ter vontade de ser grande só pra ter vontade de voltar a ser pequeno...
De algum modo pressenti que aquelas férias no sítio seriam únicas, e que aquele momento em especial, preso na casa, a casa fria, era tudo muito lindo, no futuro formaria um belo quadro na minha lembrança. Melhor ainda do que formava então.
Eu só vontade de estar ali, nenhum lugar mais. A janela aberta, a escuridão... O vento noturno soprava, e entrava, e a gente com medo de que aquela ventania toda apagasse as velas. Éramos todos movidos a lamparina e cera. Era bom.
Eu sentei-me no chão gélido, chão de pedra, bem em frente à janela. Fiquei olhando o céu do sítio, e as bordas da janela que se liquefaziam junto com a chuva, e escorriam para dentro e para fora.
Ela veio e se sentou ao meu lado. Ficamos namorando a noite. Aquela noite tão escura, e tão viva, e ardente. Fazia frio e nós, aquecidos.
Ela não ligara muito para mim durante todo aquele tempo... Julho passaria sem que nos olhássemos de frente, não fosse aquela linda noite, aquela líquida janela. E eu padeci, o muito tanto que é permitido a um menino banguela, ainda aberto e sem verniz, padeci de amores por ela.
Aquela noite... Aquela noite trouxe em suas asas de vento um punhado de novidades, promessas de futura nostalgia, de cheiro de sereno, de descoberta, aqueles, aquela, aquilo. Ela que se sentou ao meu lado, e olhou a chuva comigo. Trouxe consigo uma vela. A vela logo se apagou. Os adultos dormitavam nas cadeiras, ao redor. Nós nos amávamos. Amávamos com os olhos, e nos devorávamos em curiosidade... Tudo isso com o poder das pupilas dilatadas. Ela me olhava pela primeira vez.
A noite de chuva no sítio, que descortinou a nós dois um mundo novo. O mundo do menino que de repente, em meio à água transparente da tempestade noturna, se torna um universo de cores e coisas indizíveis...
E depois você entende por que vale a pena viver por uma só lembrança, uma lembrança sem malícia alguma. A lembrança é a esperança da repetição, esperança de que uma chuva como aquela, e uma amante de olhos, banguela que nem ela e também como eu então, voltem a habitar a retina - viva, presente -, não só a memória e as fugidias reminiscências do coração.
Sentia milhares de coisas ao mesmo tempo, e o vento que entrava pela janela era bom. Me fazia recordar de coisas que eu ainda nem vivera, e me fazia ter vontade de ser grande só pra ter vontade de voltar a ser pequeno...
De algum modo pressenti que aquelas férias no sítio seriam únicas, e que aquele momento em especial, preso na casa, a casa fria, era tudo muito lindo, no futuro formaria um belo quadro na minha lembrança. Melhor ainda do que formava então.
Eu só vontade de estar ali, nenhum lugar mais. A janela aberta, a escuridão... O vento noturno soprava, e entrava, e a gente com medo de que aquela ventania toda apagasse as velas. Éramos todos movidos a lamparina e cera. Era bom.
Eu sentei-me no chão gélido, chão de pedra, bem em frente à janela. Fiquei olhando o céu do sítio, e as bordas da janela que se liquefaziam junto com a chuva, e escorriam para dentro e para fora.
Ela veio e se sentou ao meu lado. Ficamos namorando a noite. Aquela noite tão escura, e tão viva, e ardente. Fazia frio e nós, aquecidos.
Ela não ligara muito para mim durante todo aquele tempo... Julho passaria sem que nos olhássemos de frente, não fosse aquela linda noite, aquela líquida janela. E eu padeci, o muito tanto que é permitido a um menino banguela, ainda aberto e sem verniz, padeci de amores por ela.
Aquela noite... Aquela noite trouxe em suas asas de vento um punhado de novidades, promessas de futura nostalgia, de cheiro de sereno, de descoberta, aqueles, aquela, aquilo. Ela que se sentou ao meu lado, e olhou a chuva comigo. Trouxe consigo uma vela. A vela logo se apagou. Os adultos dormitavam nas cadeiras, ao redor. Nós nos amávamos. Amávamos com os olhos, e nos devorávamos em curiosidade... Tudo isso com o poder das pupilas dilatadas. Ela me olhava pela primeira vez.
A noite de chuva no sítio, que descortinou a nós dois um mundo novo. O mundo do menino que de repente, em meio à água transparente da tempestade noturna, se torna um universo de cores e coisas indizíveis...
E depois você entende por que vale a pena viver por uma só lembrança, uma lembrança sem malícia alguma. A lembrança é a esperança da repetição, esperança de que uma chuva como aquela, e uma amante de olhos, banguela que nem ela e também como eu então, voltem a habitar a retina - viva, presente -, não só a memória e as fugidias reminiscências do coração.
EMPANTIPATIA
Só quem já provou um verdadeiro desamor à primeira vista, pode ter noção do que vem a ser a empantipatia.
"Empantipatia" é, como bem suposto, a junção de antipatia com empatia. Configura-se "empantipatia" quando antipatia e empatia coexistem de maneira inconsciente e perfeitamente instável.
Essa mescla de emoções, que na realidade consiste num só sentimento, aparece normalmente quando um indivíduo se sente pessoal e profundamente perturbado com a existência de um outro determinado indivíduo. Aí está o desamor à primeira vista, também conhecido por "nojinho", e este desamor é sempre prenúncio à tal empantipatia.
Não passa de um amor não professado. Sabe-se lá por quais medos, projeções, anseios...
Mas voltemos.
O quadro de sutil desamor logo evolui e transforma-se em antipatia bruta, nojo mortal, asco sem limites e indefinível. Você não sabe muito bem por que despreza tanto a esse seu semelhante, mas sabe unicamente que a mera pronúncia do nome da pessoa já é capaz de despertar em você as maiores crises de ira e golfadas.
Mas o que você não sabe é que toda essa antipatia, no fundo da sua mente, adormecida no mais remoto recôndito do seu coração, na verdade é a pura e simples empatia.
De fato, essa sua antipatia quase irracional pode ser perfeitamente explicada: você não se dá com determinada pessoa porque enxerga nela você mesmo. E não consegue evitar desprezá-la, para não desprezar-se, porque ela reflete você de uma maneira irrevogável. Tanto os pontos positivos, quando os negativos. Ainda que sua antipatia insista em reconhecer somente estes últimos.
Desta forma, a empantipatia ocorre quando a discórdia que você nutre para com alguém encontra explicação no fato de que você se parece com o alvo do seu desprezo muito mais do que gostaria.
Afinal, é sempre aquela história... A linha tênue do amor e ódio... Neste caso, também quem prevalece é o amor. Ou melhor, a empatia.
E tudo se dá de maneira metódica e bem familiar (você provavelmente conhece o passo-a-passo, mas de outros contextos): Você nega, mesmo depois de muito tempo desprezando aquele em quem você se projeta; em seguida, vem a raiva; após isso, a tristeza; e, por fim, a aversão se transforma em confortável aceitação.
E tudo então deságua numa curiosa amizade... Já que, apesar de enxergar no outro o seu pior, não dá para resistir a ter como melhor amigo alguém com as mesmas melhores partes de você.
"Empantipatia" é, como bem suposto, a junção de antipatia com empatia. Configura-se "empantipatia" quando antipatia e empatia coexistem de maneira inconsciente e perfeitamente instável.
Essa mescla de emoções, que na realidade consiste num só sentimento, aparece normalmente quando um indivíduo se sente pessoal e profundamente perturbado com a existência de um outro determinado indivíduo. Aí está o desamor à primeira vista, também conhecido por "nojinho", e este desamor é sempre prenúncio à tal empantipatia.
Não passa de um amor não professado. Sabe-se lá por quais medos, projeções, anseios...
Mas voltemos.
O quadro de sutil desamor logo evolui e transforma-se em antipatia bruta, nojo mortal, asco sem limites e indefinível. Você não sabe muito bem por que despreza tanto a esse seu semelhante, mas sabe unicamente que a mera pronúncia do nome da pessoa já é capaz de despertar em você as maiores crises de ira e golfadas.
Mas o que você não sabe é que toda essa antipatia, no fundo da sua mente, adormecida no mais remoto recôndito do seu coração, na verdade é a pura e simples empatia.
De fato, essa sua antipatia quase irracional pode ser perfeitamente explicada: você não se dá com determinada pessoa porque enxerga nela você mesmo. E não consegue evitar desprezá-la, para não desprezar-se, porque ela reflete você de uma maneira irrevogável. Tanto os pontos positivos, quando os negativos. Ainda que sua antipatia insista em reconhecer somente estes últimos.
Desta forma, a empantipatia ocorre quando a discórdia que você nutre para com alguém encontra explicação no fato de que você se parece com o alvo do seu desprezo muito mais do que gostaria.
Afinal, é sempre aquela história... A linha tênue do amor e ódio... Neste caso, também quem prevalece é o amor. Ou melhor, a empatia.
E tudo se dá de maneira metódica e bem familiar (você provavelmente conhece o passo-a-passo, mas de outros contextos): Você nega, mesmo depois de muito tempo desprezando aquele em quem você se projeta; em seguida, vem a raiva; após isso, a tristeza; e, por fim, a aversão se transforma em confortável aceitação.
E tudo então deságua numa curiosa amizade... Já que, apesar de enxergar no outro o seu pior, não dá para resistir a ter como melhor amigo alguém com as mesmas melhores partes de você.
sexta-feira, 9 de março de 2012
RECADO
Neste dia da mulher, seja homem.
Diga a ela o que você sente. Mas diga com todas as letras.
Diga a ela que você se arrepende, que se arrepende muito de sua última burrada, e que provavelmente voltará a cometer outras, mas tudo sempre estará bem se ela estiver com você.
Neste dia da mulher, fale a verdade.
Admita que você realmente olhou para a bunda da vizinha - mas não é ao lado dessa que você quer estar para o resto da vida.
Dê a ela uma flor, apanhada com todo o carinho. Não precisa ser um buquê de rosas vermelhas, opulentas... Não. Basta ser uma florzinha miúda, dessas róseas, amarelinhas ou brancas, que aparecem pelo chão, por entre as frestas da calçada, e que resistiu a todas as intempéries para estar com ela.
Seja generoso, afável, descontraído.
Ser generoso - dar a ela aquele beijo de cinema com o qual ela sempre sonhou, e dedicar uma parte sincera da sua atenção às coisas que ela tem a dizer.
Ser afável - tratar os cabelos dela, as mãos dela, o pescoço dela, o coração dela..., enfim, ela toda, com ternura. Sem medo de parecer fraco. Não há homem de caráter mais forte do que aquele que demonstra seus sentimentos, sem nem precisar dizê-los.
Ser descontraído - não pegar no pé dela caso tenha exagerado na maquiagem, no salto alto ou na chapinha. E rir um pouco dessa preocupação tão febril com a aparência, deixando claro que, para você, ela é musa até de pijama e rímel borrado.
Seja homem. Mas não seja só hoje. Que hoje seja só o ponto de partida. E que amanhã, e amanhã, e depois..., você prossiga sendo o homem que essa mulher pediu a Deus.
Não duvide. Ela com certeza pediu.
Então apenas... Seja.
Diga a ela o que você sente. Mas diga com todas as letras.
Diga a ela que você se arrepende, que se arrepende muito de sua última burrada, e que provavelmente voltará a cometer outras, mas tudo sempre estará bem se ela estiver com você.
Neste dia da mulher, fale a verdade.
Admita que você realmente olhou para a bunda da vizinha - mas não é ao lado dessa que você quer estar para o resto da vida.
Dê a ela uma flor, apanhada com todo o carinho. Não precisa ser um buquê de rosas vermelhas, opulentas... Não. Basta ser uma florzinha miúda, dessas róseas, amarelinhas ou brancas, que aparecem pelo chão, por entre as frestas da calçada, e que resistiu a todas as intempéries para estar com ela.
Seja generoso, afável, descontraído.
Ser generoso - dar a ela aquele beijo de cinema com o qual ela sempre sonhou, e dedicar uma parte sincera da sua atenção às coisas que ela tem a dizer.
Ser afável - tratar os cabelos dela, as mãos dela, o pescoço dela, o coração dela..., enfim, ela toda, com ternura. Sem medo de parecer fraco. Não há homem de caráter mais forte do que aquele que demonstra seus sentimentos, sem nem precisar dizê-los.
Ser descontraído - não pegar no pé dela caso tenha exagerado na maquiagem, no salto alto ou na chapinha. E rir um pouco dessa preocupação tão febril com a aparência, deixando claro que, para você, ela é musa até de pijama e rímel borrado.
Seja homem. Mas não seja só hoje. Que hoje seja só o ponto de partida. E que amanhã, e amanhã, e depois..., você prossiga sendo o homem que essa mulher pediu a Deus.
Não duvide. Ela com certeza pediu.
Então apenas... Seja.
sábado, 4 de fevereiro de 2012
TIRANIA DA PRESSA
Texto para a coluna Antenados, do jornal Tribuna Amapaense, em 4 de fevereiro de 2012.
É incrível como, nos dias de hoje, vivemos com pressa. E quando digo “hoje”, tenho consciência de que essa corrida maluca não se iniciou há algumas semanas ou anos, mas há décadas, talvez no momento em que começaram a modernizar os computadores e massificar seu uso, lá pelos anos 70, ou então com a internet, em 80.
Entretanto, apesar de ser possível traçar alguns pontos específicos para o surgimento – ou agravamento – da fome de velocidade ao longo da história, é certo que a pressa, assim como o esmero e a paciência, sempre existiu. O homem (sabe-se lá desde que momento remoto) convive com a pressa como quem convive com a fome e a sede. Temos pressa em evoluir, conquistar, ganhar. Temos ambição pelo progresso e, consequentemente, com essa pressa de vencer, nós somos impulsionados a inventar, inovar, ajustar as circunstâncias às nossas necessidades e caprichos.
Contudo, a diferença entre a pressa de antes e a pressa de agora é que, no passado, os meios que usávamos para alcançar certos fins consistiam em uma preparação longa, cuidadosa, atenciosa, apurada, esmerada. Por exemplo, quando Alexander Graham Bell comprou de Antonio Meucci o arquétipo de um estranho invento chamado “telefone”, Bell certamente tinha pressa em aprimorar tal engenhoca. Mas essa pressa não fez com que o cientista atropelasse a si mesmo. Pelo contrário, a pressa de Graham Bell e de muitos outros personagens da história, era caracterizada pela paciência e minúcia com que se dedicavam às pesquisas.
Hoje, o que vemos é a tecnologia da pressa aliada a um estilo de vida nada saudável e nada feliz, ao contrário do que sugere a superfície. A pressa de hoje nos impulsiona não ao progresso (afinal, tudo parece já ter sido descoberto e inventado), mas sim a uma rotina frenética, estressante. E nosso principal objetivo nessa rotina é fazer o máximo de coisas (im)possíveis num curto espaço de tempo, entupindo assim os dias de uma enormidade de tarefas e afazeres que nos prometem um ciclo de vida escravista pelos próximos trinta, quarenta anos.
Temos pressa para tudo. Antes mesmo de fabricarmos um pensamento razoável na cabeça, antes até mesmo de abrirmos os olhos, o que vem nos brindar logo de manhã é a pressa, a pressa e suas demandas. E, se tempo é dinheiro, todo mundo também tem pressa em multiplicar tal tempo, tornando-o assim uma máquina de bilionários.
Leda ilusão...
O tempo, a pressa, o dinheiro, tudo isso é mais importante do que acordar de manhã e ter consciência de si mesmo? De onde se está e das boas possibilidades que se tem? E não me venha falar em derretimento das calotas polares, crise mundial, superaquecimento da Terra... Eu não tenho pressa em fatalizar nada! Eu quero é perceber que estou viva, e não ser engolfada pela falta de tempo. Falta de tempo até para sorrir, para gargalhar, para lacrimar de alegria.
Com ganas de otimizar nosso tempo, tudo tornou-se virtual. Mas, sinceramente, isso também é um saco! Compras, contas, interação social... Tudo pela internet?! Veja essa nova geração que emerge (ou será que já emergiu, tamanha a sua pressa?). Será, certamente, uma geração mais High-Tech e informacional que a anterior. No entanto, eu me pergunto: Será mais viva, será mais “Carpe Diem”, e todo aquele papo bucólico e bacana de “aproveitar o dia”?
Não!
A partir de agora, as novas gerações ascendem com uma pressa nociva entranhada em todas as áreas da vida. Querem amadurecer na marra e, em nome desse afã, pintam a casca de rosa e amarelo, quando o interior ainda está verde. O pior é que as velhas gerações também se deixam contaminar por tal febre e aderem-na, querendo transformar a vida numa maratona sem linha de chegada.
Acho que a única coisa boa na pressa é poder preparar um Miojo em menos de três minutos. Só que até mesmo esse curioso e ágil ritual gastronômico começa a desgastar seu charme. Porque, a cada vez que um pacotinho de macarrão instantâneo é aberto, e uma porção de água é colocada sobre a boca do fogão (o mesmo é válido para micro-ondas), mais e mais mentes se perguntam, aflitas: “Não dá pra ferver mais rápido?!”.
É incrível como, nos dias de hoje, vivemos com pressa. E quando digo “hoje”, tenho consciência de que essa corrida maluca não se iniciou há algumas semanas ou anos, mas há décadas, talvez no momento em que começaram a modernizar os computadores e massificar seu uso, lá pelos anos 70, ou então com a internet, em 80.
Entretanto, apesar de ser possível traçar alguns pontos específicos para o surgimento – ou agravamento – da fome de velocidade ao longo da história, é certo que a pressa, assim como o esmero e a paciência, sempre existiu. O homem (sabe-se lá desde que momento remoto) convive com a pressa como quem convive com a fome e a sede. Temos pressa em evoluir, conquistar, ganhar. Temos ambição pelo progresso e, consequentemente, com essa pressa de vencer, nós somos impulsionados a inventar, inovar, ajustar as circunstâncias às nossas necessidades e caprichos.
Contudo, a diferença entre a pressa de antes e a pressa de agora é que, no passado, os meios que usávamos para alcançar certos fins consistiam em uma preparação longa, cuidadosa, atenciosa, apurada, esmerada. Por exemplo, quando Alexander Graham Bell comprou de Antonio Meucci o arquétipo de um estranho invento chamado “telefone”, Bell certamente tinha pressa em aprimorar tal engenhoca. Mas essa pressa não fez com que o cientista atropelasse a si mesmo. Pelo contrário, a pressa de Graham Bell e de muitos outros personagens da história, era caracterizada pela paciência e minúcia com que se dedicavam às pesquisas.
Hoje, o que vemos é a tecnologia da pressa aliada a um estilo de vida nada saudável e nada feliz, ao contrário do que sugere a superfície. A pressa de hoje nos impulsiona não ao progresso (afinal, tudo parece já ter sido descoberto e inventado), mas sim a uma rotina frenética, estressante. E nosso principal objetivo nessa rotina é fazer o máximo de coisas (im)possíveis num curto espaço de tempo, entupindo assim os dias de uma enormidade de tarefas e afazeres que nos prometem um ciclo de vida escravista pelos próximos trinta, quarenta anos.
Temos pressa para tudo. Antes mesmo de fabricarmos um pensamento razoável na cabeça, antes até mesmo de abrirmos os olhos, o que vem nos brindar logo de manhã é a pressa, a pressa e suas demandas. E, se tempo é dinheiro, todo mundo também tem pressa em multiplicar tal tempo, tornando-o assim uma máquina de bilionários.
Leda ilusão...
O tempo, a pressa, o dinheiro, tudo isso é mais importante do que acordar de manhã e ter consciência de si mesmo? De onde se está e das boas possibilidades que se tem? E não me venha falar em derretimento das calotas polares, crise mundial, superaquecimento da Terra... Eu não tenho pressa em fatalizar nada! Eu quero é perceber que estou viva, e não ser engolfada pela falta de tempo. Falta de tempo até para sorrir, para gargalhar, para lacrimar de alegria.
Com ganas de otimizar nosso tempo, tudo tornou-se virtual. Mas, sinceramente, isso também é um saco! Compras, contas, interação social... Tudo pela internet?! Veja essa nova geração que emerge (ou será que já emergiu, tamanha a sua pressa?). Será, certamente, uma geração mais High-Tech e informacional que a anterior. No entanto, eu me pergunto: Será mais viva, será mais “Carpe Diem”, e todo aquele papo bucólico e bacana de “aproveitar o dia”?
Não!
A partir de agora, as novas gerações ascendem com uma pressa nociva entranhada em todas as áreas da vida. Querem amadurecer na marra e, em nome desse afã, pintam a casca de rosa e amarelo, quando o interior ainda está verde. O pior é que as velhas gerações também se deixam contaminar por tal febre e aderem-na, querendo transformar a vida numa maratona sem linha de chegada.
Acho que a única coisa boa na pressa é poder preparar um Miojo em menos de três minutos. Só que até mesmo esse curioso e ágil ritual gastronômico começa a desgastar seu charme. Porque, a cada vez que um pacotinho de macarrão instantâneo é aberto, e uma porção de água é colocada sobre a boca do fogão (o mesmo é válido para micro-ondas), mais e mais mentes se perguntam, aflitas: “Não dá pra ferver mais rápido?!”.
domingo, 22 de janeiro de 2012
FAMA VIRAL
Texto para a coluna Antenados, do jornal Tribuna Amapaense, em 21 de janeiro de 2012.
Nesta última semana, os dois assuntos mais comentados na internet e nas emissoras de televisão foram: O possível estupro no programa Big Brother Brasil e Luiza, que estava no Canadá.
Se você não sabe quem é Luiza, eu explico: A menina teve seu nome citado pelo pai em uma propaganda de imóveis na qual, depois de enumerar as suítes, ambientes e clube de lazer do prédio, o homem dizia: “E é por isso que eu fiz questão de reunir toda a minha família, menos Luiza, que está no Canadá, para recomendar este empreendimento que eu assino embaixo”.
O vídeo virou febre na internet. Reproduziu-se de modo viral, e a propaganda já tem 5 milhões de visualizações, além de outros arquivos relacionados ao assunto. Agora o pai da moça, Gerardo Rabelo (colunista social paraibano), junto com o resto da população brasileira tentam entender e explicar como se deu tamanho sucesso.
De acordo com site da internet, onde consta uma entrevista de Gerardo e do produtor do comercial, “toda essa história começou quando o pai de Luiza, há cerca de 15 dias, foi convidado para participar do comercial em João Pessoa. A filha Luiza não estava na ocasião devido ao intercâmbio no Canadá, e os produtores acharam que Gerardo deveria dar alguma explicação sobre a ausência da filha. O vídeo, após cair no YouTube, acabou virando uma grande piada, e claro, um ótimo negócio”.
Luiza já está de volta ao Brasil. A pretexto, para dar cabo às piadinhas cibernéticas e frear o vírus “Luiza, que está no Canadá”. Contudo, há quem diga que a jovem voltou mais cedo do intercâmbio simplesmente para gozar as delícias da fama, por mais efêmera que possa ser. Assim ou assado, uma coisa é certa: O vírus já sofreu mutação e agora vêm em sua versão 2.0 – “Luiza, que não está mais no Canadá”. Pelo visto, teremos ainda mais quinze minutos de fama.
O segundo tópico mais explorado na rede e em todo Brasil, foi o suposto estupro ocorrido no reality show de Pedro Bial. Não transmitiram a cena libidinosa na TV aberta, pois o programa não estava mais sendo exibido quando tudo aconteceu. Entretanto, aqueles que possuem o “pay-per-view” conferiram integralmente o desenrolar da “transação”.
Os telespectadores com acesso a cena começaram a fazer algum barulho na internet, comentando o provável crime. Monique, a vítima, parecia estar dormindo durante o estupro, visivelmente alcoolizada. Rapidamente os vídeos se alastraram pela internet. E o participante assanhadinho, Daniel, foi expulso do programa, com menos de uma semana.
Desde o dia do ocorrido, 15 de janeiro, a polícia já esteve na casa do Big Brother Brasil, e muitas outras implicações judiciais já eclodiram, atingindo todos os envolvidos, inclusive os produtores do programa. A polêmica rendeu até 8 pontos de audiência para a emissora rival, de Bispo Macedo. O programa “Fala Brasil”, da Rede Record, conseguiu ultrapassar o “Mais Você”, de Ana Maria Braga, falando sobre o próprio BBB 12.
Agora, o ex-big brother Daniel tenta voltar à disputa. Para saber se ele vai conseguir ou não o seu regresso, só assistindo aos próximos capítulos do “jogo”. Eu não me arrisco.
O que podemos aprender com isso tudo (se é que há algum aprendizado para além da alienação/indignação maciças) é que, hoje, só consumimos porcaria. Lixo informacional, quando não humano. Estamos bombardeando a nós mesmos com tantas discussões inúteis, que podem até gerar algumas observações interessantes a respeito do caráter humano, mas que não vão nos moldar rumo a uma cidadania concreta ou postura social mais nobre. Nem nos brindarão com uma porção eficaz e responsável de criticidade, consciência, e todos aqueles ideais politicamente corretos, que a cada dia parecem um ideal mais distante e démodé.
A fama viral que a internet proporciona a alguns sortudos indivíduos – os quais muitas vezes não fazem nada para merecê-la, apenas integram a “sociedade paraibana” ou bolinam uma pobre menininha bêbada em rede nacional –, só comprova nossa fome de lixo.
Talvez estejamos buscando um escape para a seriedade imposta pelos problemas do mundo. Talvez queiramos só rir à custa de uma elite que frequenta o Canadá, ou falsamente nos indignar e espernear perante tudo o que aparece na televisão, já que Bial afirmou ser esta a “ágora brasileira”. Talvez tudo isso junto. Talvez nada disso. Não há nada a saber. O que há para saber? Que a crise continua? Que Elis Regina morreu? Ora... Luiza não se importa com isso, imagino eu. Muito menos Daniel. E, se não importa a essas duas personalidades, ícones consagrados pela aclamação popular, não importa a nenhum de nós também.
VEROSSIMILHANÇAS DE GRISELDA E TEREZA CRISTINA

Texto para a coluna Antenados, do jornal Tribuna Amapaense, em 7 de janeiro de 2012.
Não existe nada de verossímil em Tereza Cristina Velmont, muito menos em Griselda Pereira. Ou seja, essas duas personagens do horário nobre são seres inventados que, por mais redundante que possa parecer, jamais ocorreriam na vida real.
A começar pelos nomes. Onde no Brasil uma pessoa de fina estirpe se chama "Tereza Cristina"? Que combinação mais esdrúxula! Bem, até há certas misturas às quais já nos adaptamos. Exemplos: Ana Paula, Ana Júlia, Paulo Vitor, Carlos Eduardo, e etc. Mas, Tereza Cristina?! Eca.
Já sobre a mocinha do enredo, nunca conheci, nem ouvi falar de alguém que conhecia alguém que conhecia alguém de nome “Griselda”. Tudo bem que a "Griseldinha" não é brasileira, é portuguesa, mas duvido que existam muitas outras na terra dos lusitanos.
De volta à nossa vilã Tereza Cristina, falemos agora de sua conduta pérfida no agir e no vestir. Pode até ser que ela traje Versace, mas será que precisa usar sempre tudo “combinandinho”?! Vestido azul, colar azul, brinco azul, lingerie azul, lente de contato azul... Ufa! A ricaça poderia aprender mais com seu pajem colorido, o Crodoaldo (este nome então não vamos nem comentar...).
E sobre o rastro de crimes e malvadezas que Tereza Cristina deixa atrás de si? Não há consequências? O mau-caratismo da mulher é outra inverossimilhança das brabas... Ela já matou na escada, matou na estrada, matou no hospital, tocou fogo na casa da portuguesa... E sempre escapa impune. Com tanto talento e criatividade, difícil é acreditar que nunca arrumou um ofício para dar sentido à sua vida.
A respeito de Griselda, acrescento: se eu ganhasse 50 milhões, será que continuaria por aqui, chorando as pitangas com minhas comadres (sem lhes dar um mísero milhão), suando litros a fim de manter uma lojinha de ferramentas, enquanto minha filha continua a vender cremes, meu filho numa pensão, e o outro desempregado? É claro que não! Eu mandaria todo mundo pra Sorbonne e ia cuidar dos trâmites pra fazer meu pé-de-meia lá na China, enquanto curtia horrores em Ibiza.
Enfim. O que quero dizer é que, apesar de ter um apelo popular incrível, devido ao exagero tragicômico de seus personagens, a novela “Fina Estampa” é uma impossibilidade por si só. Como já dito, a trama pode até fazer sucesso, porque os telespectadores gostam de ver suas mazelas e virtudes ali, maximizadas... Mas não por muito tempo. Essa fanfarronice toda enjoa. Os personagens são extremamente caricatos. Não há neles as camadas das cebolas, que só os melhores autores conseguem descascar capítulo após capítulo.
Volto a afirmar: Nenhuma daquelas pessoas existiria na vida real, simplesmente porque são boas demais, ou mesquinhas demais, ou chatas demais, ou perfeitas demais, ou malvadas demais, ou nada de mais... Ninguém é assim em nenhum dos cantos do globo. Todos nós somos dotados de imperfeições e requintes, singeleza e capricho, surtos, tiques, afetações, trombas, tapas, algodão e veludo. Coexistindo. Somos personagens esféricos, vivendo novelas reais; não quadrados e óbvios, enfadonhos, nem estupidamente maravilhosos, glamorosos, audaciosos e gostosos sempre.
Desse modo, os nossos programas, nosso entretenimento em geral, devem refletir aquilo que somos, pois esta também é uma maneira de entendermos melhor a condição humana. Quando, por exemplo, assistimos a filmes ou ouvimos músicas nos quais há uma humanidade tão visceral e, ao mesmo tempo, uma beleza tão angélica, nós começamos a nos compreender melhor.
Não pretendo aqui afirmar que, para prestar, nossas distrações precisem ser exaustivamente sérias, sisudas e espartanas. Não é isso. As próprias telenovelas também servem para escapulirmos um pouco das novelas da vida real, não?... Pois bem, que seja válvula de escape, que seja invenção, criatividade, uma dose certa de exagero. Mas até o surrealismo conserva em seu nome o radical palpável da realidade.
A saga Harry Potter, por exemplo. Apesar de um aparente besteirol mistificado, conserva algo indispensável à verossimilhança, que supera a minúcia de sua autora: todos aqueles seres bizarros que lemos ou vimos são recheados de dilemas e questões demasiado humanos.
Assim, o que proponho não chega a ser nenhuma revolução televisiva ou qualquer prepotência do gênero. Também não sugiro que se troque o controle remoto por um exemplar do Nietzsche. Quero apenas, com todo o meu charmoso pedantismo, sugerir à rede Globo que me contrate para escrever a próxima novela das nove. Serei extraordinária, sem perder o elã da realidade.
A B
Nossa amizade começou aos trancos e barrancos
Tropeçando
Sem saber muito bem em que pé ficava
Ou será que foi silenciosa, macia, discreta?
Foi acidente
Ou estavámos destinados um ao outro?
Éramos duas almas dissonantes
Que acabaram formando uma curiosa sinfonia dúbia
Lá
Fá
Ou éramos mesmo
Duas peças específicas
De uma peça maior que toda a nossa maestria?
Não sei, não sei
O que sei é que houve momentos em que ela brecou
Engolfou
Correu
Suspirou
Respirou mansinha
Então sobreveio
Subiu
Desceu
E está aqui, agora
Nossa cifra pessoal
Sem saber como será o próximo instante
Mas, afinal,
Acho que nossa amizade é, na verdade, um Sol menor
Dos muitos sóis que ainda estão por vir
Tropeçando
Sem saber muito bem em que pé ficava
Ou será que foi silenciosa, macia, discreta?
Foi acidente
Ou estavámos destinados um ao outro?
Éramos duas almas dissonantes
Que acabaram formando uma curiosa sinfonia dúbia
Lá
Fá
Ou éramos mesmo
Duas peças específicas
De uma peça maior que toda a nossa maestria?
Não sei, não sei
O que sei é que houve momentos em que ela brecou
Engolfou
Correu
Suspirou
Respirou mansinha
Então sobreveio
Subiu
Desceu
E está aqui, agora
Nossa cifra pessoal
Sem saber como será o próximo instante
Mas, afinal,
Acho que nossa amizade é, na verdade, um Sol menor
Dos muitos sóis que ainda estão por vir
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