terça-feira, 22 de maio de 2012

Texto com o qual competi no 7º concurso "Construindo a Igualdade de Gênero"

Ser menina, pobre e preta no Brasil
A primeira vez que me dei conta de haver um abismo separando homens e mulheres, foi quando descobri que meu pai ganhava mais que minha mãe, apesar de terem a mesma profissão.
Ele, por ser homem, detinha alguns privilégios. Para começar, sempre fazia suas rondas com um revólver, presente do chefe, com o qual poderia se proteger facilmente. Já mamãe, ela só contava com a ajuda dos próprios braços magros.
Além de desarmada, também não tinha a chance de receber as mesmas comissões que papai, o qual fazia trabalhos extras como segurança.
Assim, dei-me conta de que, apesar de homem e mulher terem sido feitos “à imagem e semelhança de Deus”, os homens eram um bocadinho mais semelhantes, e por isso ganhavam mais.
Gradualmente, meus olhos se abriram para uma série de outras disparidades de gênero dentro de casa. Meu irmão, dois anos mais velho, sempre teve a notável preferência do papai, que frequentemente trazia balinhas para nós depois de alguma vigília. Mas, para meu irmão, trazia também revistas. Vai ver achava que mulheres não gostavam de ler. Pode ser até que minha mãe, inconscientemente, o tenha convencido disso, já que não lia nunca. Mas, pobrezinha, o que não admitira nem mesmo para o marido é que era quase analfabeta. Começara a trabalhar desde cedo e, atestando um triste clichê brasileiro, acabou largando os estudos.
Embora os gibis que meu irmão ganhava fossem uma prova incontestável de sua “superioridade” aos olhos do papai, só comecei a perder as estribeiras mais tarde, quando percebi que as mulheres da casa eram tratadas como a criadagem. Fazíamos de tudo, eu principalmente. Desde lavar louça e trocar lâmpada até matar rato.
Meu pai e meu irmão não ajudavam. Este último só contribuía mesmo para as despesas, já que, ao longo dos anos, substituiu os gibis pelas revistas de mulher pelada, e a escola por uma namorada. Enquanto isso, além de estudar, eu tinha de limpar a sujeira, administrar a parca comida, lavar louça, roupa, banheiro... Enfim, impossível não guardar ressentimentos. Àquela altura, eu já era uma bomba de rancor prestes a explodir.
Minha amargura só aumentou quando o papai deixou a gente. Eu estava então com quinze anos, meu irmão com uma namorada grávida e minha mãe com uma coletânea de olhos roxos. Foi uma dissolução traumática porque, embora mamãe, imbuída de coragem, tenha recorrido por conta própria à Lei Maria da Penha, nós dependíamos do pai para manter a casa financeiramente. Ele havia mudado bastante nos últimos anos. Começara a beber e humilhar a família. Mas, apesar disso, logo após a partida dele, mamãe morreu não apenas de remorso, mas também de tuberculose.
Eu e meu irmão então começamos a passar fome, como nunca antes. Fui impelida a trabalhar fora. Devido a tudo isso, eu me encontrava depressiva, rancorosa, machucada... E ainda cursava o primeiro ano do ensino médio pela terceira vez, reprovada consecutivamente.
Foi na escola que fiz outra descoberta, a que faltava para anular ainda mais minha autoestima já tão judiada. Descobri que era feia. Tal revelação veio no meio de uma aula, quando reparei que algumas colegas cochichavam apontando para mim. Intuí que havia algo errado, senti-me desajustada, não só por ter repetido o ano. Apesar de sermos um rebanho de miseráveis ali, era eu a ovelha negra, e isso contava mais. Senti de repente o peso plúmbeo da exclusão.
Com o passar do tempo, os cochichos e insultos aumentavam. O passatempo da turma era maldizer a minha aparência e cor de pele. Meus colegas chamavam-me “nariz de fornalha”, “carne preta” e “Bombril”, por conta do meu “cabelo ruim”. Eles eram tão dissimulados ao me pisotear a alma, que nenhum professor jamais tomou conhecimento.
Houve um dia em que, demasiadamente oprimida, cheguei aos prantos em casa. Não tinha ninguém para me amparar, de modo que corri para o banheiro. Ali, de frente para meu algoz, um espelho baço, eu vi minha pele tão negra que beirava o roxo, meu nariz enorme e esborrachado, de narinas dilatadas, minha boca arrematando a caricatura grotesca de um símio. Naquele momento, fechei os olhos e quis sumir. Sem rastro, sem laivo, apenas me pulverizar, acabando de vez com a existência dolorosa.
Inconsciente do que fazia, passei a me odiar, por ser negra e feia. Criei dentro de mim um monstro racista, maior do que todo o preconceito que eu poderia encontrar por parte de outrem.
Um dia, no finalzinho do ano, achei um bilhete bem dobrado dentro do meu caderno. A nota dizia: “Preciso falar, antes que fique louco. Te amo!”. Não... O papel estava endereçado a mim, como poderia ser engano?
E o remetente? André. O garoto de olhos castanhos, pele branca, cabelo claro, absurdo ar maduro. Além do charme inefável, com um dos dentes, o canino, levemente torto. Não era possível que gostasse de mim. Mais uma brincadeira estúpida!
No mesmo dia, à hora da saída, vi André de longe, recostado ao portão. Percebi que me esperava, porque sorriu. Era surreal, afinal, durante todo o ano letivo, não trocáramos mais que cinco palavrinhas. Mas ele sorria sim. E aquele canino superior não poderia estar mentindo... Mas fechei meus olhos para a verdade contida no riso do primeiro amor, e só pude ouvir o que minha alma gritava. Eu era esterco, jamais despertaria qualquer paixão.
Antes que o coitado do André terminasse de perguntar se eu recebera seu bilhete, disparei todos os tipos de xingamentos e, ato contínuo, eu chutei-lhe o saco. Mandei que me esquecesse, me deixasse em paz. Ele ainda me olhou, confuso... E eu quase acreditei.
Desde aquele dia, não tive mais notícias do André. Mas cresci, e percebi coisas que, àquela altura, era criança demais para entender. Não posso dizer que superei todos os traumas de quinze anos atrás, mas posso dizer o que quero para mim agora e para o meu futuro.
Quero continuar a ser uma mulher bem-sucedida, segura e dona de mim, apesar do que sofri. Não quero pena nem compaixão, quero oportunidade. Não quero que me dissequem, me esmiucem e me cataloguem, dizendo que sou preta, rosa ou azul. Eu sou, antes de tudo, eu. Sou humana, com algum senso-crítico e responsabilidade social.
E quero para as minhas futuras filhas e filhos, que eles tenham a chance de crescer em um Brasil diferente, mais humano, longe do enganoso estereótipo de nação que abraça a todos como filhos, mas, na realidade, segrega àqueles que não correspondem a determinadas expectativas.
Quem sabe, daqui a poucos anos, depois de mais algumas lágrimas e infâncias arrancadas, não consigamos formular enfim, ainda que a preço de sangue, uma identidade nacional verdadeira e honesta, sem máscaras, sem estratos.
Sempre terei minha própria vida como exemplo: nascer menina, pobre e preta no Brasil pode ser um pesadelo, quando nós mesmas discriminamos e anulamos nossas chances de felicidade. Ou quando acreditamos que mulher é mula de carga, que branco não ama preta, que rica não ama pobre, que bonito não ama feio...
Mas, por outro lado, nascer menina, pobre e preta no Brasil também nos faz entender, depois de alguns calos, que não precisamos sofrer eternamente no altar dos sacrifícios. Que, antes de tudo, somos gente, feitos primeiro à base de emoção e só depois cobertos de carne. Estamos para além da questão da pele, da melanina, do sexo.
E os que vierem depois de mim saberão disso tudo. Porque já está mais do que na hora de superarmos nossas leviandades, nossas picuinhas, nossos medos, e calarmos de uma vez todos os monstros sociais que insistem em anular o que temos de mais bonito: a nossa essência puramente humana, sem rótulos nem adornos. Humana. Eu sou humana, muito prazer.



7 comentários:

  1. Juro q logo no início da leitura pensei q vc estava escrevendo sobre si mesma e juro tb q uma lágrima gritava para escapar.
    O prêmio foi mais q merecido..esse texto é mais q magnifico chegado próximo de divino (exagerado! rsr!). Sério, vc é minha escritora favorita..bjos&bjos!

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    1. Muito obrigado, meu querido Alberto! Sempre me derreto pelos teus elogios! Espero que seja verdade... É ótimo ouvir (ler) tudo isso.
      Se sou tua escritora favorita, és meu leitor favorito! Sempre pronto a encher minha bola... Saudades!

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  2. Um texto cravado pela sinceridade, o que pra mim já bastaria pra considerá-lo notável, belo. Mas claro que há mais do que sinceridade, bem mais, por isso penso que a premiação foi justa, Bárbara, embora não tenha lido nenhum dos outros textos participantes do concurso.

    Lembro que uma vez, numa crônica da Maitê Proença, ela dizia que escrever é se expor, essencialmente. Acho que concordamos os três quanto a isso, né?

    Parabéns pelo texto, pela premiação, mas sobretudo pela coragem de uma escrita tão sincera, Bárbara.

    Ah, e a que erros tu se referiu? Uma vírgula ou outra dita incorreta gramaticalmente, esse tipo de coisa? Sinceramente, acho que, embora um escritor tenha obrigação de conhecer as regras prescritivistas da nossa gramática, ele jamais deve se curvar a todas elas, isso inclusive construiria um texto pra lá de engessado, travado, excessivamente compassado, tu não acha? Tive um professor que dizia o seguinte: "A Língua nunca deve se curvar à Gramática." Nunca esqueci. Porque acho que escrever é (também) uma questão de ritmo, e em nome desse ritmo é mais do que aceitável driblar, desde que conscientemente, a gramática. Concorda, ou não?

    Um abraço, nos vemos.

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    1. Lucas, muito obrigada pelos maravilhosos elogios! É uma honra, para mim, lê-los... Talvez você saiba a felicidade que dá ter um texto apreciado por outro amante da literatura (como percebo que és). Obrigada, também, pela tua sinceridade.
      Sim, escrever é expor-se. Como te disse, o texto é ficcional. No entanto, como divorciar a literatura da realidade? Acredito que há mais realidade nessa narrativa do que em minha vida, muitas vezes...
      Concordo em relação a tudo o que disseste. Não posso pensar em maneira melhor de me exprimir. Quer dizer, até posso. Em uma frase, "dane-se a gramática!". Talvez tenha soado demasiado radical, mas a verdade é que acabas de me abrir os olhos para o fato de que a essência e a qualidade são mais importantes que as regras todas.
      Valorizo muito o que escreves.
      Enfim, um outro abraço. Nos vemos.

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    2. Diga lá, Bárbara!
      Pois é, esse tema do, digamos, desapego gramatical em benefício do ritmo que se quer empregar no texto sempre me chama atenção quando estou lendo alguma obra. Porque pra mim é bem claro que muitos autores jogam com isso. Mas, como te disse, não penso que as normas gramaticais não devem ser devidamente conhecidas por quem gosta de escrever, acho que elas são o primeiro guia e têm, sim, de ser dominadas pelo autor. Aliás, talvez o miolo da questão esteja exatamente aí: o autor dominar as regras, e não o inverso. Enfim, já estou falando em círculos.
      Obrigado também pelas palavras, de verdade.
      Bom fim de semana, um beijo.

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  3. Nossa Bárbara, muito lindo, muito profundo. É a realidade, posso até não ser pobre como a personagem, mas sou negra, ja ouvi xingamentos por isso na escola, por pessoas que ainda diziam serem meus amigos, ja cansei de ouvir falarem mal do meu cabelo crespo, de tanto ouvir isso, ate cheguei a acreditar, recusando meus cachos... Mas a gente nao deve se curvar a tudo o que dizem, porque nem sempre é verdade!
    Amei seu texto, vc mereceu super esse premio, te desejo muito sucesso, e que continue escrevendo assim, maravilhosamente bem. Bjos amiga.

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    1. Aaaaaaaai, amiga, obrigada!!! Que bom que gostaste! Sabe, todo mundo me pergunta em que me inspirei pra escrever essa redação... E não acreditam muito quando eu digo que peguei algumas experiências pessoais e maximizei, e coisas que já vi fazerem ou imagino que fizeram com as pessoas ao meu redor também... Enfim...
      Mas, como a menina da nossa história, já entendemos que cabelo e pele não são tão importante, não é? Teus cachos são lindos e a chapinha me redimiu! Somos muito além disso! Tenhamos sempre em mente!
      Saudades, amiga!
      Obrigada por tudo! :*

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